Reportagem de Bruno Horta

A ala de segurança, a morte lenta e a memória

8ª ENFERMARIA

Valentim passa pela 2ª, 5ª e 6ª enfermarias do Hospital Miguel Bombarda até que em 1951, três anos depois da leucotomia, é transferido para a 8ª Enfermaria, também conhecida como Pavilhão de Segurança. Era a ala psiquiátrica onde, até 2000, se internavam os criminosos com doença mental (inimputáveis) e os doentes extremamente violentos. Uma prisão psiquiátrica. Ali fica, nunca se perceberá a razão concreta, até morrer.

“Gostas de cá estar?” – pergunta-lhe um médico em Dezembro de 1951. “Sim, havendo sossego, não desgosto. Já estou acostumado ao meio, conheço o pessoal médico e de enfermagem. O que eu queria era que me deixassem ir a casa agora pelo Natal.” Ainda o médico: “Por que não pedes alta?” Valentim: “Não sei a quem pedir, o diretor parece que está doente.”

Em Março de 1964, um enfermeiro regista que Valentim tinha agredido um doente com um murro. Em Abril de 1965 outro enfermeiro dirá que ele se apresenta “lúcido e orientado” e que se “ocupa inteiramente de artigos femininos”. Em Junho de 1965 um terceiro enfermeiro anota que o comportamento de Valentim é “hostil para com a família”. “Diz que a mãe é que faz para que ele não saia daqui, porque, diz ele, tem inveja que ele pertença ao teatro”.

Quando Luís d'Oliveira Nunes o entrevista encontra-o no quarto-cela “a fazer tricot, rodeado de santos, pássaros e flores, a falar fluente e corretamente alemão, francês e espanhol.” O jornalista soubera da existência da história através da professora de dança Ruth Aswin, que naquela ocasião também foi visitar o antigo aluno. Luís d'Oliveira Nunes descreve-o como “um farrapo” em termos físicos.
Dedica-se a pinturas, criação de bonecas de pano, pintura de cenários em lençóis. “Inúmeras vezes aparecia no meu gabinete para vender as suas criações e era presença habitual nas festas de Natal que o hospital organizava”, escreve Reis de Oliveira, antigo administrador do hospital Miguel Bombarda, no catálogo de uma exposição dedicada a Valentim, em 2013.

A seguir ao 25 de abril de 1974 passa a ter liberdade de movimentos, embora continue na 8ª Enfermaria. “Às vezes vou a casa da minha irmã Ester, mora aqui perto, trata-me bem”, diz a Maria João Avillez. Passa a ter liberdade, mas sai pouco. Lisboa é já um mundo que ele tanto desconhece. Apareceu a ponte sobre o Tejo e o Padrão dos Descobrimentos, a Cidade Universitária e o metropolitano, fechou o cinema Chiado Terrasse e já não há vendedoras de flores na Rua Garrett, subsistem os polícias sinaleiros de luvas brancas e capacete no Largo do Chiado. A paisagem é a mesma mas tudo mudou: Portugal é uma democracia. Mas ele já só vê o que lhe interessa.

“Hoje fui à Baixa, ao Ramiro Leão” – conta no “Expresso” – “por causa de uma fazenda de que ando à procura para fazer umas calças para o senhor enfermeiro. Ficaram de me dar umas amostras para a semana, não havia a fazenda com aquelas listas, como eu gosto. Quando está sol vou a Paço de Arcos. Nós éramos de lá e gosto de lá ir tomar o sol, tomar banho. Faz bem nadar na água limpa do oceano.”

Ainda ao “Expresso, queixa-se da comida que lhe servem nos austeros refeitórios do hospital, com bancos corridos e mesas gastas de madeira e tampo branco: “A sopa é muito reimosa, tem muito óleo, o estômago não digere.” E expõe hábitos diários: “Da televisão não gosto nada. Do que eu gosto é daqueles artistas travestidos, muito gordos, são cómicos no palco a fazerem de mulheres. Às vezes vou ao Parque Mayer, está a mesma coisa. Sento-me numa esplanada e deixo-me lá estar, não falo com ninguém, já não é gente dos meus tempos.”

A jornalista do “Expresso” descreve-o como “mais personagem que doente, mais caso social que mental e sobretudo mais memória que vida”. Do quarto de Valentim, a que chama “quarto-camarim”, faz um retrato cru: “Caixas de cartão, papéis, comida, garrafas, um fogareiro a gás, panelas, colheres de pau, cremes, produtos de beleza, cordéis, bonecas, roupas amontoadas, livros, álbuns, e a um canto uma penosa Gioconda pintada por ele; em cima da cama, os trabalhos de crochet ou de bordados que faz neste momento e nas paredes um mapa de Portugal, imagens religiosas e, encaixilhadas, várias recordações do Valentim-bailarino. Tudo aquilo é fascinante e patético.”

No dizer de Reis de Oliveira, Valentim “era o modelo perfeito do doente institucionalizado em corte total com as agressões do mundo exterior”. A 8ª Enfermaria tinha-se tornado um lar, o sítio de onde já não saía ainda que pudesse.

“O quarto-cela era o local mais reivindicado para si próprio, recriando um mundo que não partilhava com mais ninguém”, acrescenta o antigo administrador hospitalar. “Era, afinal, aquilo que Erving Goffman denominou ‘personal territory’, onde acumulava todos os objetos suscetíveis de lhe proporcionarem algum conforto, prazer e independência.”

No fim da entrevista, Maria João Avillez reagirá: “Tenho vontade de voltar para trás e de lhe explicar que não foi o hospital, não foi o azar, não foi sequer a vida que o tornaram assim, mas penso que é melhor para ele continuar sem saber que fomos nós, que a culpa é nossa.”