Pode um copo azul, de boca medianamente larga, ser um objeto intimidante? No caso concreto a resposta assenta num sim. Nos próximos 20 minutos, o repórter investido de funções de provador, troca o gravador, caneta e o bloco por dois copos que servem de teste às qualidades do azeite e às capacidades do homem para o avaliar. Uma experiência com o seu quê de responsabilidade. Por várias razões. Sento-me frente à master blender Mavilde Marchante e ao engenheiro Luís Simões, vice-presidente Global de Operações da Victor Guedes, casa responsável pela produção dos Azeites Gallo. Acresce à presença dos especialistas a informação que recolhi nas pretéritas duas horas, numa ronda à unidade fabril sediada em Abrantes. Informação suficiente para subir a fasquia do respeito que guardo a este produto milenar e para derrubar ideias não fundamentadas sobre o azeite. Na cabeça e palato do consumidor continua a vogar alguma confusão sobre este produto que, em rigor, é o sumo oleoso extraído de azeitonas. Já diziam os árabes na nossa Península, no século VI d.C, “az-zait”, o sumo de azeitona. Não nos enganemos, contudo, na simplicidade da expressão. No azeite, tal como na vida, não há apenas o preto e o branco e a riqueza está nos cambiantes.

Azeite: Dentro do copo azul vivem histórias, territórios e muito carácter
Fábrica da Gallo em Abrantes.

Nos 15 mililitros de azeite, medida exata e para respeitar, que agora vertem no meu copo azul de prova viaja uma história de produção feita de subtilezas e complexidades. A azeitona quando nasce não é toda igual. Provém de regiões distintas, de árvores com diferentes idades, porte e regime de exploração. É diferente uma colheita manual de uma mecânica e já no lagar a seleção e limpeza, a lavagem, a moenda (fruta é reduzida a pasta), a termobatedura e a centrifugação (o azeite é separado dos sólidos) são processos com o seu quê de influência no produto final. Em suma, tal como nos vinhos pesa o terroir, o tratamento que o homem dá ao produto e, claro, a variedade da azeitona. Uma Galega não é igual a uma Cordovil, Cobrançosa ou Verdeal. E isso sente-se no azeite.

Azeite: Dentro do copo azul vivem histórias, territórios e muito carácter
Uma das primeira fases produtivas em processo fabril. Análise dos lotes de azeite recebidos.

Na forma como a azeitona recebe mais ou menos mimo, também o azeite se revela. “Na Gallo os recebemos cinco a sete mil amostras de azeite por ano. Perto de 70% são rejeitadas”, havia-me confidenciado em jeito de abertura de conversa Luís Simões. A marca registada nos idos de 1919 (a origem da empresa remonta atrás, a 1860), não produz azeitona, recebe o “azeite somente de produtores nacionais, loteia-o e produz os seus blends em função de perfis criados. Perfis que decorrem das aptidões de consumo. No passado o consumidor gostava de um perfil de azeite mais suave. Hoje procura outras experiências sensitivas o que inclui azeites mais intensos”, diz-me o engenheiro da Gallo. Ou seja, há aqui que controlar factores como a uniformidade do produto no tempo e isso decorre, em boa medida, da qualidade dos lotes selecionados à entrada na fábrica e da investigação e desenvolvimento. “Área onde temos envolvidas nove pessoas e onde, inclusivamente, são empreendidos testes de envelhecimento do azeite e testadas diferentes cores do vidro das garrafas, um garante da conservação”.

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Os mitos que devemos derrubar

No momento presente sei à partida que não cumpri duas das regras de ouro do provador oficial. Não jejuei na hora anterior à prova e cedi ao matinal impulso narcisista de me banhar em perfume. Ao bom provador para além destas regras base, à qual se acrescenta um não firme ao tabaco, são exigidas aptidões sensitivas e milhares de horas de treino. Uma preparação que inclui algumas rasteiras como, por exemplo, introduzir produtos da concorrência e acrescentar ao bom azeite tulha em diferentes proporções. Isto para identificar este sabor associado a lagar antigo. Atenção, no caso presente não é característica que valha sequer medalha de bronze em concurso de azeite. Pelo contrário, “há que desfazer este mito. A tulha de madeira era o local onde se acondicionavam as azeitonas. Estas, amontoadas, sofriam processos de fermentação e ganhavam um sabor desagradável, não ajustável a um bom azeite”.

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Uma das linhas de engarrafamento.

No caso desta minha prova e no que respeita às regras-base, como se viu, dois a zero a meu desfavor. Nada como procurar inverter o jogo com uma rajada de perguntas. “Porque é o copo azul?”; “Porque não varia no tamanho?”; “porque tapamos o copo com a mão assim que ele recebe o azeite?”. “Azul porque neutraliza a tonalidade do azeite. Esta não deve ser tida em conta na apreciação do provador. A dimensão do copo é certificada, isto porque os critérios de prova têm de ser homogéneos. Dentro do copo o volume de azeite exposto ao ar e em contato com o vidro tem de ser sempre o mesmo. Acresce que tapamos o copo com a mão e aquecemos o seu conteúdo até próximo dos 28 ºC para libertar os compostos voláteis e, com eles, as qualidades presentes no azeite”, explica-me a master blender. No caso vertente, prestamo-nos a uma prova organolética. Traduzindo, trata-se de com o olfato e paladar avaliar as qualidades, ou defeitos, do azeite. Uma prova que neste ponto em concreto não difere muito daquelas outras em torno dos vinhos. Mas que não haja confusão um vinho e um azeite não têm a mesma filiação, nem tão pouco evoluem da mesma forma dentro de uma garrafa. Um bom vinho pode melhorar com o passar dos anos dentro da sua casa de vidro. Um azeite, mesmo o melhor, sofre um processo de oxidação que o leva a perder qualidades com o passar do tempo. Não vale, por isso a boa intenção de o deixar a amadurecer na despensa. Mesmo que o visado seja um azeite premiado, item onde a Victor Guedes não esconde orgulho. “Só concorremos a concursos com regras claras”, adverte Luís Simões. Nos últimos três anos a Gallo recebeu dezenas de prémios na Europa, Américas e Ásia. Um reconhecimento consubstanciado em galardões e diplomas que o engenheiro me apresenta, destacando as várias distinções nos prémios “Mario Solinas”, um dos mais importantes galardões, atribuído pelo Conselho Oleícola Internacional.

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A prova dos nove. O carácter de cada azeite

É chegada a “Hora H” como se usa dizer. Um mergulho do nariz dentro do copo, inspirando-o, seguido de um banho de boca, absorvendo o “ouro líquido”. “Devemos banhar toda a cavidade bocal com o azeite”, especifica Mavilde Marchante. O provador vem investido de uma missão. Detetar os quatro atributos principais do azeite, o frutado que se sente por via nasal, o amargo, perceptível na parte lateral da cavidade bocal e posterior da língua, o picante, sentido na garganta e, finalmente, o doce, na ponta da língua. Um frutado que pode ser verde ou maduro, consoante o grau de maturação das azeitonas. Não é um processo fácil para o aspirante a provas, como acontece com este articulista. O azeite é um produto complexo. O frutado tanto nos pode encostar o palato à memória do sabor de uma maçã, banana, alfarroba ou frutos tropicais, como a frutos vermelhos, a folha de oliveira ou a erva fresca.

Azeite: Dentro do copo azul vivem histórias, territórios e muito carácter
Equipamento laboratorial.

Já o amargor é característico do azeite obtido de azeitonas verdes e o picante manifesta-se na sensação tátil de picadas, particularmente na garganta. Um picar que pode denunciar azeites produzidos no início da campanha. Finalmente o doce. Vale aqui relembrar a definição de azeite. Ou seja, não pense o consumidor que o carácter adocicado de um azeite provém da adição de açúcares. Pense, antes, na qualidade mais suave e aveludada de certos azeites. E, uma vez mais, é impensável não ver nestes 15 mililitros de líquido dourado a história que começa lá atrás, antes mesmo da azeitona, na oliveira. Um percurso bem presente na prática do loteador, o especialista que faz a primeira prova do azeite que chega à fábrica pelas mãos do produtor. É este “sim” ou “não” (e como se viu atrás há muitos “nãos”) que determinará as horas seguintes de vida do azeite no processo produtivo da Gallo. Um assentir do loteador, no fundo um provador, ao qual se terá de somar outro “sim”, o da equipa do laboratório físico-químico com a análise química. E, aqui, se expõe e derruba outro mito em torno dos azeites, o da acidez. Que fique bem vincado, como me explica Luís Simões, “a acidez não é percetível na prova do azeite, não influencia o sabor”. Ou seja, a acidez reporta à percentagem de ácidos gordos livres presentes no azeite. Um parâmetro que avalia, isso sim, o estado das azeitonas antes da colheita e a forma como a extração do “óleo” foi efetuada. Um azeite com acidez acima dos 2% não será elevado à categoria de Virgem Extra (acidez máxima de 0,8%) ou Virgem (acidez máxima de 2%).

Azeite: Dentro do copo azul vivem histórias, territórios e muito carácter

Mavilde Marchante desafia-me a encontrar o carácter dos dois azeites que me põem à prova. O desafio é cego. Sigo à risca a cartilha do provador. Percebo um azeite doce, porque suave, pouco dado a picante e amargo, mas cúmplice de frutos secos. Estou perante um “Colheita Madura”, um azeite extra virgem que a nota de prova aconselha a nele “molhar um bom naco de pão saloio ou acompanhando uma salada rica”. Copo dois e entro nos antípodas sensitivos. Amargor e picantes intensos, doce muito ligeiro na abertura da prova. Este extra virgem mantém o carácter frutado do azeite anterior. Temos um “Azeite Novo” com um sabor que não tem pressa em livrar-se do palato. “Ideal para temperar saladas ou para nos lançarmos no ritual da tiborna, molhando um bom naco de pão em azeite aquecido”, esclarece-me a nota de prova.

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Presença da Gallo no mundo.

Luís Simões entra no jogo e faz-me perceber o que é oferecer aos sentidos um azeite de um lote “excluído”. Ou seja, dentro do copo verte agora um parente pouco nobre da casta dos azeites. “Consegue identificar o sabor a tulha?”, pergunta-me este responsável pela produção. Sem dúvida. Algo que podemos encostar ao odor do mofo, ao sabor do ranço. Um produto que não verá a cadeia produtiva da Gallo, nem entrará em nenhuma das 14 referências que a marca, criada pelo galego Vítor Guedes há perto de cem anos, comercializa atualmente. Um portfólio que inclui Virgem Extra Premium, onde cabem os dois azeites que acabo de provar, um “Grande Escolha” e um “Colheita ao Luar”. Neste caso é mesmo para levar à letra pois as azeitonas são colhidas no frio da noite e rapidamente levadas para o lagar. Descendo na escala, nos Virgem Extra, oito produtos à escolha, entre eles os “Reserva”, “Clássico”, “Suave” e “Gourmet”. Há que satisfazer apetites. Os portugueses gostam de azeite, sete litros per capita e por ano. Muito à frente dos brasileiros com 200 mililitros anuais, chineses com 20 mililitros ou russos com 14 mililitros. Isto de acordo com dados disponibilizados pela Gallo no seu site. Um consumo modesto noutras latitudes que não invalida que “75% da facturação da Gallo se faça com base na exportação para 40 países e regiões e onde se inclui o Brasil, Angola e o Médio Oriente”, acresce Luís Simões.

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O afã fabril

Estou no cenário maior de operações da “Vítor Guedes Lda”, a unidade fabril. Luís Simões é, aqui, o meu anfitrião e abre-me as portas para a adega de azeites. Uma bateria de depósitos, alguns com capacidade para 80 mil litros de azeite, guarda por algumas horas o “ouro líquido” acabado de chegar. “O azeite loteado por fornecedor nunca está aqui mais de 12 horas. Ou é rejeitado, ou aprovado e, nesse caso, o produto é desbloqueado do depósito onde se encontra e vai para um outro, o de blend. Depois seguirá para o engarrafamento”. Caminhamos numa sala com temperatura controlada, entre os 19ºC e os 21ºC. Uma adega com “uma capacidade máxima para 1200 toneladas de azeite”. Todo o processo é informatizado, desde o enchimento dos depósitos de inox, à mistura de diferentes lotes e à passagem do azeite pela filtração, um processo que garante a remoção de partículas provenientes do lagar e a extração da humidade. Passo seguinte, barulhento por sinal, porque assim tem de ser, a linha de engarrafamento. Aqui o azeite entra num outro ritmo. Já não descansa. Ou melhor, descansará depois deste afã de enchimento mecânico, com o tilintar simultâneo de milhares de garrafas, as expirações da maquinaria, a dança sincopada da robótica. A visita faz-se, aqui, com protectores para os ouvidos. É-me passado o briefing à entrada. Vejo garrafas a serem invertidas e sopradas mecanicamente. “Um garante de segurança antes do enchimento e do capsulamento”, diz-me um operador de linha. A introdução da cápsula de alumínio ou de plástico é aqui uma questão meramente estética, não terá relevância na conservação do produto. De olho mantém-se o laboratório que retira regularmente para análise amostras deste azeite já engarrafado. Fá-lo para “prova de vida”. Ou seja, nos 24 meses seguintes o produto continuará a ser rastreado. No rótulo segue o “bilhete de identidade” do azeite. “Se, eventualmente, houver uma queixa, um problema com o produto no futuro, podemos remontar ao lote através deste código”. Luís aponta para um código de letras e números inscrito numa garrafa acabada de rotular e que sai da linha por onde transitam as congéneres para o destino final em fábrica.

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Um dos antigos armazéns foi adaptado para receber um pequeno museu onde se expõe a história da marca.

Uma vez mas a informática e a robótica tratam de acompanhar este azeite já identificado dentro das garrafas com diferente tara, incluindo as miniaturas, dos recipientes em lata e as garrafas onde entrarão outros produtos que saem das linhas da Victor Guedes, como são exemplo os vinagres. É aqui que toda esta família se separa, na pressa das passadeiras distribuidoras que organizam as garrafas por encomendas. Estas, entregues aos braços mecânicos dos robots que trataram de organizar o produto nas paletes, acondicionando-o com uma eficiência sobre-humana em filme-plástico. “Esta fase é muito sensível. Cada palete pesa milhares de quilos. Já viu o que seria se, por acidente, uma delas sofresse uma quebra?”. Para evitar dissabores esta fase do processo, tal como as anteriores, é sujeita a testes de esforço regulares. Os resultados são homologados e certificados. Um item que é ponto sensível na Victor Guedes. A empresa conta com diferentes certificações em sistemas de gestão da qualidade e sistemas de gestão ambiental, como sublinha Luís Simões.

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Uma das últimas fases do processo fabril, a rotulagem.

Deixo a casa da Gallo um pouco mais destemido face a uma prova que até há poucas horas era território virgem. É complexa esta ligação das características de um bom azeite com o olfato e palato. Em boa verdade, vale pensar que nos basta um fio generoso deste produto e um bom pedaço de pão para abrirmos uma mesa. Se lhe juntarmos uma história com uma pitadinha de mito, apuramos o prato. Ficam nestas linhas uma narrativa para espicaçar o apetite. Conta-se que certo dia um galego que andava a matutar na forma de criar bons azeites e internacionalizá-los procurava um nome a preceito para o seu produto. Ao abrir a janela de sua casa, manhã cedo, canta-lhe o galo no campo. “Ora, ai está. Vai ficar o azeite a chamar-se Gallo”. E com dois l´s, por respeito à galega origem de Victor Guedes. Já lá vão perto de cem anos.