A hora da refeição é para muitas famílias, o momento de reencontro após um dia de trabalho/escola, onde de forma tranquila se degusta o tempo e os sabores. Vamos por dois minutos fechar os olhos e pensar em todo o processo… a cozinha está cheia de luz, as panelas e tachos são palco de um espetáculo musical, com a sopa a ferver, a colher a mexer… em algumas casas ouvem-se os sons dos robots de cozinha e as televisões ou tablets… os cheiros perfumam a roupa, a casa… e tudo é uma grande explosão de sensações, estímulos e expetativas. A mesa está posta, todos estão preparados… 3…2…1…

- NÃO COMO! NÃO GOSTO!..
- VÁ, SÃO SÓ 5 COLHERES!
- NÃO GOSTO… É VERDE! NÃO COMO!
- AI COMES,COMES….

E de repente, está instalado o caos. Provavelmente este cenário é comum em muitas casas. A alimentação não tem de ser um campo de batalha, mas muitas vezes é. As refeições fazem parte da rotina de qualquer um de nós, repetem-se por 4/5 momentos diferentes no dia, todos os dias do ano… pelo que é muito importante, dedicarmos um pouco do nosso tempo a pensar, que por vezes uma grande birra à refeição nem sempre é só uma grande birra e pode mascarar dificuldades alimentares de causa variada.

Vários são os fatores que levam ao campo de batalha. Neste artigo pretendemos olhar a alimentação de forma alargada, e salientar alguns aspetos que consideramos importantes para uma melhor compreensão da complexidade desta tarefa diária tão rotineira e simples.

Os problemas alimentares na idade pediátrica, traduzem uma condição em que a criança não ingere quantidade e/ou qualidade de comida diversificada para as suas necessidades nutricionais, por forma a manter a curva de crescimento saudável. A criança pode ter dificuldades ou recusar-se comer.

Não há dados exatos sobre a incidência das perturbações alimentares na idade pediátrica, porém é queixa frequente nos gabinetes médicos. A prevalência entre as crianças com desenvolvimento típico, ronda varia entre os 5-35%. As perturbações na alimentação e deglutição estão frequentemente associadas a situações clínicas complexas, como alterações nas estruturas anatómicas, alergias e/ou perturbações oro-motoras. Nas perturbações de desenvolvimento, em particular nos atrasos de desenvolvimento, perturbações do espetro do autismo, prematuridade, síndrome de Down, e outras condições neurológicas, a prevalência aumenta. Nem todas as crianças com dificuldades alimentares têm uma perturbação alimentar.

A alimentação é um processo extremamente complexo influenciado por estruturas anatómicas, neurofisiológicas, fatores sensoriais aspetos sociais e culturais. Apesar da multiplicidade de fatores que envolve o desenvolvimento das competências alimentares, a maior parte das crianças atinge maturidade nesta área sem grandes dificuldades. Tal como qualquer outra área do desenvolvimento, existem etapas em que é expetável determinado comportamento/desempenho. A ressalvar que cada criança tem o seu ritmo e que é um ser único, numa família também ela única e com regras e pautas muito próprias.

A refeição - permite que a criança seja nutrida, socialize, desenvolva um sentimento de pertença à família, está envolta em aspetos culturais; permite que a criança explore os aspetos sensoriais da comida, e desenvolva uma rotina diária.

A seleção da comida é influenciada, por recursos socioeconómicos; propósito da refeição (se é uma festa, se é uma dieta prescrita por nutricionista…), gostos individuais, cultura/tradição familiar.

O processo de alimentação é automático, é possível fazer outras coisas enquanto se come. Muitas vezes, se ouvem nos consultórios, “ninguém morre à fome com comida à frente.” Porém, é muito importante enquadrar esta premissa.

Quando nós adultos escolhemos o que vamos comer, vamos escolher tendo em conta um sem número de aspetos. O sabor, a necessidade nutricional, os valores e crenças associados à alimentação, o contexto, a companhia…. Pegar numa simples maçã e comer é um ato extremamente complexo a nível sensorial. A primeira dentada ativa de imediato quatro sistemas sensoriais: o gustativo, o olfativo, o tátil e o propriocetivo; estes dois últimos sistemas menos óbvios, mas que estão ligados à textura, temperatura e consistência da fruta. Além disso também ouvimos o som da dentada e vemos a maçã, sistemas auditivos e visual.

Quando as crianças comem, geralmente comem o que lhes é oferecido e como está… a título de exemplo, pensemos na canja de galinha que é um prato muito associado ao cuidado em tempo de recuperação de uma doença, ao mimo, à atenção extra… tem uma carga emocional, cultural… há um investimento em fazer uma “canjinha para ficar bom”. Quase inconscientemente, se a canja for para alguém que estiver com dores de garganta, não se põe pedaços de frango muito grandes… porém, se a criança tiver dificuldades motoras (não avaliadas) ninguém vai entender porque a criança rejeita o prato que lhe foi preparado com tanto esmero.

A diversificação alimentar aumenta por volta do 1º ano de vida. Sendo que nesta fase de desenvolvimento, as crianças conquistam do mundo, tornam-se cada vez mais competentes, a aprendizagem de novas competências é célere. Aprendem a andar, falar, correr, trepar… é frequente que as crianças façam mais do mesmo, pois esta consistência de comportamentos confere-lhes segurança e permite solidificar etapas. Nesta mesma fase o bebé inicia de forma mais autónoma a exploração da comida, decidindo ele quanto e o que come, do que lhe é disponibilizado. Com o mesmo princípio da segurança e consistência de comportamento, é também expetável que a criança se mantenha ‘fiel’ a um número reduzido de alimentos.

Grande parte dos estudos que retratam a alimentação, apontam as questões familiares, referindo que as preferências alimentares da criança estão ligadas às preferências alimentares dos pais… o que não é um dado surpreendente, pois os pais são responsáveis por cozinharem, e geralmente dedicam mais tempo às refeições que preferem. A relação que os pais têm com a comida, é preditora da relação dos filhos com a comida, ou não fosse esta mesma relação pais-filhos palco espelhado para tantas outras tarefas do desenvolvimento.

No processo de alimentação, que tanto os pais como as crianças têm o seu papel. Os pais são responsáveis por providenciar alimentos saudáveis e variados… as crianças são responsáveis pelo que conseguem e quanto conseguem comer, isto vai ajudar a criança a entender quando tem fome e quando está saciada. Aumento da tomada de consciência sobre as pistas do corpo. Importante referir, que para ingerir um alimento novo, uma criança pode precisar de estar em contato com ele mais de 10 vezes.

Alguns sinais de dificuldades alimentares:
- Recusa alimentos que a maioria das crianças da mesma idade come?
- Tem uma lista extremamente limitada de alimentos que come?
- Suplica por determinados paladares?
- Apenas come alimentos que não estão misturados uns com os outros?
- Só come alimentos de determinada cor (maçãs amarelas)?
- Tem vómitos ou fica enjoado facilmente?
- Prefere alimentos muito picantes ou ácidos?
- Só come se a comida estive bem quente ou já fria?
- Só come comida passada? Ou alimentos crocantes?
- Não gosta de tocar na comida nem de ficar sujo?
- Lambe, mastiga ou prova objetos não comestíveis (brinquedos, papel, plasticina)?

Há muitas razões pelas quais as crianças podem ser picuinhas/esquisitos com a alimentação, e como muitas das perturbações sensoriais, podem ser hiper ou hiposensíveis a determinados estímulos. Por exemplo:
- São mais sensíveis ao cheiro, sabor e/ou textura da comida;
- São mais inibidas, não gostam de experimentar coisas novas;
- São mais extrovertidas, querem comer sozinhas e não permitem ajuda;
- São muito ativas, e tempo de refeição é demasiado grande para estar sentado;

Para todas as questões suprarreferidas, é desejável procurar aconselhamento, para serem discutidas estratégias que diminuíam a batalha à mesa.

Algumas das estratégias gerais a aplicar, entre outras, podem ser:
- Registar a reação do seu filho aos alimentos que lhe são apresentados. Desta maneira, por aproximação poderá ser mais fácil variar a introdução alimentar;

- Apresentar os alimentos separados ou num prato com divisórias poderá incentivar a prova de alimentos que não se tocaram. Os sabores não estão misturados o que traz previsibilidade e segurança à rotina da alimentação;

- Dar hipóteses de escolha no que respeita aos alimentos novos a experimentar. Apresentar dois alimentos dos quais a criança deverá experimentar um deles, dá-lhes um papel ativo e por isso uma sensação de maior controlo;

- Comer com seu filho e ser um bom modelo de alimentação saudável. Se você comer uma variedade de alimentos saudáveis, é mais fácil o seu filho seguir o seu exemplo;

- Minimizar as distrações. A refeição é um momento social, de partilha e interação, desde o nascimento. Desligue a televisão ou outras distrações durante as refeições.

Quando associadas às dificuldades acima descritas, surgem outras dificuldades e/ou sintomas, de quadros clínicos mais complexos, a criança deverá ser avaliada por técnicos especializados em desenvolvimento infantil, preferencialmente terapeuta ocupacional e terapeuta da fala.

Mafalda Correia – Terapeuta Ocupacional mafalda.correia@pin.com.pt

Ana Paris Leal – Terapeuta da Fala ana.paris@pin.com.pt

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