Daniel tem 16 anos. Nos últimos cinco anos, viu o pai agredir a mãe repetidas vezes.

Primeiro, foram apenas uns empurrões e um chorrilho de palavras mais agressivas.

Com o passar do tempo, passaram a ser murros e pontapés, com gritos e ofensas à mistura. A irmã Sara, três anos mais nova, defendeu sempre a mãe, intervindo diretamente nas discussões e procurando, dentro do possível, manter uma relação cordial com o pai. Daniel, não. Nunca defendeu a mãe do pai e recusou-se a acompanhá-la, apesar de ferida, à esquadra onde foi apresentar uma queixa contra o marido.

Ao contrário da história ficcionada que deu origem ao livro «Obrigaste-me a matar-te», escrito pelas jornalistas Tânia Laranjo e Ana Isabel Fonseca com base em episódios de que tiveram conhecimento e publicado por A Esfera dos Livros, o calvário de Daniel e Sara é bem real. Em entrevista à Saber Viver, as autoras põem o dedo na ferida e explicam como as situações da violência doméstica afetam as crianças que têm de lidar com pais agressores.

O vosso livro é apresentado como sendo uma história de ficção mas, no fundo, retrata o dia a dia real de muitas mulheres e crianças em Portugal e noutras partes do mundo. Qual é a fronteira entre a realidade e (vossa) a ficção?

A fronteira entre a realidade e a ficção é muito ténue, uma vez que o livro é baseado em histórias que fomos ouvindo ao longo do tempo enquanto jornalistas. Essencialmente tentámos passar para o papel as nossas vivências diárias, o que vimos e o que sentimos quando entrámos em contacto com essas mulheres e crianças quando fomos confrontadas com histórias de um sofrimento brutal e atroz. Por muito que o livro seja uma ficção, grande parte dos episódios descritos são vividos todos os dias por centenas de mulheres.

Enquanto jornalistas são, muitas vezes, confrontadas com casos de violência doméstica que também afetam crianças. Quais foram as histórias ou os episódios que mais vos marcaram?

Há uma história recente de um menino de dois anos em Lisboa que foi torturado pelo padrasto. Para além da abusar da criança, o agressor ainda lhe queimou várias partes do corpo, inclusive os genitais e a planta dos pés. Esta história tocou-nos de forma especial, porque era apenas um bebé indefeso, incapaz de fugir das agressões violentas.

Quais são os tipos de agressões mais comuns?

O tipo de agressão mais comum é a física, que passa por estalos, pontapés, empurrões, mas também a psicológica, que engloba humilhações e uma destruição da auto-estima.

O meio familiar deve ser por natureza um espaço privilegiado para o desenvolvimento físico, mental e psicológico dos seus membros. De acordo com a vossa experiência, até que ponto os episódios de violência doméstica destroem esta imagem e o próprio conceito mais tradicional de família nos mais novos?

O meio familiar é muito importante para a criança se desenvolver e se crescer enquanto pessoa. O facto de os mais novos vivenciarem todos os dias episódios de uma relação que não é minimamente saudável pode ser muito prejudicial. Crianças que assistiram a episódios de violência podem, no futuro, não conseguir construir uma relação, podem não conseguir confiar no outro e deixar de acreditar que se pode ser feliz em família.

Estudos revelam que pelo menos uma em cada três vítimas permanece mais de dez anos numa relação pautada pelas agressões. A vossa análise diz-vos que essas mulheres o fazem mais por medo delas ou porque preferem manter, ainda que artificialmente, um lar estável para os filhos.

Na maioria das situações, fazem-no por medo, pois receiam ser alvo de perseguições, novas agressões e temem que a família e os amigos possam também ser alvo de represálias. Mas a verdade é que muitas mulheres ainda sonham e vivem com a ideia de uma família e de um casamento feliz. Desistir desse ideal e passar a cuidar dos filhos sozinha é para muitas das vítimas um passo muito doloroso a dar.

Quais são, na vossa opinião, as consequências para as crianças e adolescentes que assistem a atos de violência doméstica?

Para além de se familiarizarem com a violência e de muitas vezes se poderem tornar agressores, pode acontecer o inverso ou seja estas crianças podem mais tarde vir a ser vítimas. Tal acontece porque elas também não tiveram um modelo farte no núcleo familiar e tornam-se pessoas com uma baixa auto-estima e acima de tudo muito carentes em afectos.

Os episódios de violência no seio familiar podem prejudicar o desempenho escolar dos mais novos?

Sim, o facto de não terem um ambiente estável leva a que percam a concentração e a motivação nos estudos. Muitas vezes as discussões em casa, não deixam sequer que as crianças tenham o sossego e o silêncio necessário para executarem as tarefas escolares.

Quando a violência ocupa um lugar de destaque em casa, as crianças e os adolescentes podem vir a tornar-se, também elas, agressivas e intolerantes. Foi também essa a conclusão a que chegaram?

É lógico que existem excepções mas, na maioria das vezes, o que acontece é que muitas das crianças que vivenciaram episódios de violência na família tornam-se um dia mais tarde agressores.

O conceito de família está destruído.

Para muitas destas crianças, a violência passa a ser algo normal, com que lidaram desde sempre e batem nas mulheres e nos filhos porque viram o pai e o avô fazerem o mesmo.

De um modo geral, acredita-se que a criança tende a ficar do lado do progenitor agredido e não do agressor. É sempre assim ou existem exceções que confirmam a regra?  

A maioria das crianças fica do lado do agredido mas existem situações em que ficam do lado do agressor. Isto porque muitas vezes têm uma melhor relação com aquele ou porque houve algo que alterou a sua personalidade e que o faz ver a vítima como merecedora daqueles castigos. Em alguns casos as crianças chegam mesmo a ser incitadas pelos agressores a também exercerem violência sobre a vítima.