Foi a cantar alguns dos temas mais emblemáticos das grandes décadas da música francesa que Mila Ferreira começou a ter êxito, numa altura em que a televisão, os ritmos mais pop, o direito, a advocacia e o exercício físico ainda estavam longe de ser uma realidade. A determinada altura, decidiu dar um rumo diferente à carreira. Quando tentou regressar àquela que foi uma das suas primeiras paixões, o timing não era o ideal.

Em entrevista intimista, a cantora, que acaba de lançar o disco «Bonsoir Paris» com temas de Édith Piaf, Charles Aznavour, Joe Dassin, Jacques Brel e Serge Lama, explica porque é que teve de esperar meia dúzia de anos para poder voltar a entoar canções em francês e recorda os tempos em que, quando não estava ninguém em casa, ia para o jardim para poder projetar a voz sem se sentir intimidada.

Nasceu em Minde e viveu nas Caldas da Rainha mas veio para Lisboa para estudar. Foi na capital que teve, pela primeira vez, o contacto com este género de música?

Não, foi nas Caldas da Rainha. Por acaso, foi a minha irmã mais velha, a Laurinda, que tinha umas cassetes… Na altura, eram cassetes, não é? Foi aí que ouvi pela primeira vez Édith Piaf e fiquei profundamente apaixonada, porque há qualquer coisa que nos toca. Não é só a voz dela. Há qualquer coisa que é expresso através daquela voz e daquela alma. Aquela tristeza, aquela angústia...

Toda aquela personalidade da Piaf que é contagiante e que é apaixonante. E eu, com 15 anos, comecei a cantar Piaf. Primeiro, a arrumar a casa. Depois, ia cantar para o jardim quando estava a chover e quando eu sabia que estava sozinha, porque podia cantar sem incomodar ninguém e potenciar a minha voz ao máximo. Depois, cantava no metropolitano em Lisboa quando vim para cá. Mais tarde, comecei a cantar em bares.

Tem um novo disco de versões de música francesa, «Bonsoir Paris». Como é que surgiu a ideia e como é que foi feita a escolha das canções?

São clássicos da música francesa e é a versão do projeto [de espetáculos ao vivo com banda] «Bonsoir Paris», com uma roupagem que tem a ver com a nossa identidade musical. Eu sou a voz, mas há piano, acordeão e violino. Portanto, dentro daquilo que cada um dos músicos aporta ao projeto, que é muito, porque são músicos de excelência, temos a nossa versão, digamos assim, dos grandes clássicos da música francesa.

Como é que surgiu a ideia e como é que foi feita a escolha das canções?

A ideia já remonta há muitos anos. Eu iniciei a minha carreira a cantar música francesa. Embora, antes disso, tivesse ido a festivais. Mas depois, quando vim para Lisboa, para a faculdade, fui cantar música francesa em bares. Primeiro, acompanhada pelo Michel [bailarino, músico e professor francês] do acordeão e do sapateado e, como eu estava a ter sucesso e ele também, eu só conseguia trabalhar com ele uma vez por semana.

Então, ele recomendou-me outra pessoa que me acompanhasse e aconselhou-me um pianista. Foi aí que conheci o Rui [Moura, marido] e começámos a trabalhar em bares. Trabalhávamos muito em festas particulares e em grandes galas, porque realmente as coisas correram muito bem. Depois, o Rui acabou o curso de publicidade e não podia acompanhar-me. Este projeto de música francesa ficou por ali.

Mas não morreu ali...

Não. No início da década de 1990, fui ao [programa de televisão] «Momentos de Glória», apresentado pelo Manuel Luís Goucha, cantar com uma grande orquestra. Uns anos depois, o Rui começou a desencaminhar-me para começar a cantar novamente música francesa. Entretanto, surgiu o [Filipe] La Féria com o musical «Piaf» e nós, na altura, desistimos de cantar música francesa.

Depois, a Vanda Stuart foi fazer também o espetáculo dela com música francesa... Quando toda a gente parou, para não se pensar que eu os estaria a imitar, eu que creio que terei sido a primeira mulher portuguesa a cantar música francesa em Portugal, é que retomei o projeto, porque tem a ver com a minha essência. Desde os meus 15 anos que sou apaixonada pela música francesa e que canto música francesa.

Acho que esse é um ponto muito importante de esclarecer. Estreámos [o novo conceito] na passagem de ano de 2011 para 2012 e é um projecto que tem vindo a ter bastante sucesso. Temos tido muitas salas esgotadas sem qualquer promoção porque nunca fizemos televisão nunca fizemos nada. Tivemos só o apoio da Antena 1, que passava muitos spots noticiando novos concertos. Isso permitiu-nos também ter muitas salas esgotadas, coisa que nunca pensei.

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E como é que evoluem depois para o disco?

As pessoas, no final do concerto, perguntavam-nos se não tínhamos um disco para levarem para casa. A ideia foi crescendo e o difícil foi, depois, conseguir selecionar o reportório, uma vez que temos um reportório muito vasto. Apesar de ser uma gravação e embora não tenha aquela química que acontece nos concertos, o CD é muito profundo e muito emocional. Mais uma vez, gravei com a Blim Records, com quem já gravo há 11 anos. Portanto, estava em casa.

Teve uma infância difícil, como já assumiu publicamente. O que é que ainda há dessa Maria Emília que nasceu e cresceu num meio pequeno e conservador na Mila Ferreira dos dias de hoje?

Eu tenho um processo dentro de mim que recicla as coisas negativas. O que não interessa, deito fora ou escondo. Não gosto nada daquelas pessoas que, por terem passado isto, por aquilo ou por aqueloutro, depois estão o resto da vida a dizer «Oh coitadinha de mim»... Muito sinceramente, não faz o meu género. Acho que, se as pessoas se tiveram uma determinada história de vida, é porque tinham de passar verdadeiramente por aquilo.

Tinham que crescer e que aprender. Tinham que criar a sua personalidade com aquelas bases. Portanto, até dou por mim muito feliz por ter passado por muito daquilo que passei, porque isso permitiu-me conhecer a verdadeira vida. Permitiu-me saber que o meu futuro dependia de mim e que só eu é que tinha o poder de modificar a minha vida. Permitiu-me saber que tinha que estudar, que tinha de me fazer mulher e que tinha que ser independente. 

Houve uma série de coisas que me aconteceram na infância que fizeram de mim a pessoa que sou hoje. Portanto, eu vejo sempre as coisas pela positiva e nunca pela negativa. Terá havido uma ou outra coisa mais exigente em termos pessoais que, depois, ficou preterida por causa de certas marcas da infância, mas eu também não me lamento por isso. Acho que tudo aquilo por que passei me fortaleceu e me trouxe benefícios.

Não foram tempos fáceis...

Não mas, sinceramente, se eu tivesse passado por algumas das coisas por que passei na idade adulta, acho que me teria custado mais. Porque eu, no fundo, formei a minha personalidade no meio de alguma tristeza e de alguma amargura. E também, digamos, da falta de muitos bens materiais, às vezes essenciais. Não digo comida, porque isso nunca faltou, mas outras coisas. Por isso, eu sei o que é que é não ter.

Valoriza mais hoje os bens materiais em consequência disso?

Sinceramente, não ligo muito aos bens materiais. Não ligo. É evidente que trabalho para viver numa casa decentezinha e essas coisas todas. Também quero ter direito a férias mas eu não coloco em foco nos bens materiais. Não ligo nenhuma a carros. Não tenho o melhor telemóvel do mundo, antes pelo contrário. É um dos piores que é para poder cair 50 vezes e eu não ter problemas com isso.

Não, não ligo nenhuma. Oferecem-me, por vezes, iPads e iPhones e eu dou tudo ao meu marido. Portanto, se calhar, pronto, essas dificuldades tornaram-me nesta mulher que sou hoje.

Mas, quando olha para as fotografias desses tempos difíceis, o que é que sente?

Às vezes. fico um bocadinho triste. Digo para mim mesma «Oh pá… Puxa, caramba!» mas também remato logo «Mas, pronto, já passou»... Mas, atenção, os meus pais dentro do possível, sobretudo a minha mãe, fizeram tudo que estava ao seu alcance para nos criar melhores condições de vida.

Depois, há outras coisas, que são mais íntimas e que têm a ver com a personalidade das pessoas e que, de alguma maneira, nos marcam na infância. Mas eu não gosto de me queixar da vida. Gosto de falar das coisas positivas e da aprendizagem que tive com as coisas, eventualmente menos positivas, que vivi e que, de certo modo, também contribuíram para a vida que tenho hoje em dia.

Texto: Luis Batista Gonçalves com Mafalda Baudouin