Maria João, normalmente começamos a conversa falando dos avós das pessoas, mas no teu caso tu tens conhecimento de antepassados muito ilustres...

Maria João Abreu: Foi fascinante! Desde que estudei a história de Dom Pedro e Dona Inês que fiquei fascinada com essas duas personagens. Por causa de um programa da RTP onde se procuravam as raízes de determinadas pessoas, fizeram-me uma entrevista em que me perguntavam se havia alguma figura da nossa História que me fascinasse. Eu falei de Dom Pedro e Dona Inês e a equipa ficou espantada porque já tinham mais informação do que eu sobre os meus antepassados. Quando, durante as gravações, visitei o Mosteiro e vim a saber que descendo daquelas duas criaturas, entrei em catarse logo ali. Foi a cereja no topo do bolo! Antes tinha estado no Mosteiro do Lorvão, onde viveu Dona Catarina de Eça, a primeira mulher abadessa em Portugal, minha antepassada. Era bisneta deles e foi uma mulher muito importante na época, tanto que o Rei da época pediu ao Papa para a destronar do clero porque era uma mulher «muito liberal». Era muito dotada nas artes, mandou pôr um coro na Abadia, punha as freiras a fazer compotas e bordados para dar aos pobres, tinha uma visão diferente do seu papel! Mas quando me perguntam quais são as minhas raízes eu digo que é tudo gente humilde, que trabalhava o campo, porque na verdade tenho de tudo na família.

E os teus avós, que papel é que tiveram na tua vida, quem eram, de onde vieram?
M.J.A.: Eu não conheci o pai da minha mãe, faleceu quando ela tinha 4 anos. Conheci a minha avó e nas férias ia sempre para casa dela. Vivia entre Torres Novas e o Entroncamento, numa terra que se chama Lamarosa. No Verão, nós íamos trabalhar com ela no campo antes dos figos secarem: tínhamos de roçar as ervas à volta da copa das árvores para que os figos quando caíssem não se misturassem todos. Depois tínhamos que apanhar os figos, pôr em tabuleiros para continuarem a secar e tínhamos de escolher os que tinham bicho ou não, para irem para a fábrica.

Fizeste isso tudo?
M.J.A.: Fiz isso tudo! A minha avó tinha uma burra que andava à nora para tirar água de um tanque para regar os terrenos, e eu ajudava nas regas também. Ela sempre esteve ligada à agricultura, tinha cabras, fazia queijo, tinha ovelhas.

Então essas são as memórias ligadas a essa avó? Do campo, das coisas mais rústicas?
M.J.A.: Sim! Depois ao fim-de-semana havia os bailes em que as raparigas se sentavam na fila da frente e as mães, naquele caso era a minha avó, na fila de trás a controlar. Diziam: «com aquele danças, com aqueloutro não danças que é casado, diz-lhe para ir dançar com a mulher!» E levava-me a excursões a mim e à minha irmã... A minha mãe diz que a minha avó fez comigo e com a minha irmã o que nunca fez com ela! Mas também eram outros tempos, eram tempos muito rígidos e de muita contenção. A minha avó ficou viúva e casou outra vez, teve mais duas filhas e um filho, portanto eu tenho um tio mais novo do que eu.

E do outro lado?
M.J.A.: O meu pai é de Amares, Águas Santas, perto de Braga. Com esses avós eu tive menos contato devido à distância, eram feirantes e tinham a alcunha dos “Roqueiros” porque faziam rocas. Quando adoeciam e necessitavam de cuidados médicos é que faziam algumas temporadas em minha casa, mas o contacto com eles foi menor do que com os avós da minha mãe.

Como é que se chamava a tal avó com quem estiveste mais em Lamarosa?
M.J.A.: É a minha avó Beatriz.

E os avós paternos?
M.J.A.: A minha avó Isaura e o meu avô Júlio.

Então com esses tem menos recordações não é? Coisas mais esporádicas? Que importância é que teve, se calhar focando-nos mais na avó Beatriz, o que é que recebeste dessa avó Beatriz?
M.J.A.: Essa avó Beatriz ensinou-me a ser mulher. Na altura eu podia pensar «ai que chata ela estar a dizer isto», mas que agora reconheço que foi bom. Ensinou- me a cozinhar tal como a minha mãe, a «passajar» meias - que é uma coisa que agora já não se faz porque se compra e deita-se fora quando estão mais usadas. Quando acordavámos e queríamos ir logo tomar o pequeno-almoço a minha avó dizia (isto são as expressões dos antigos que eu agora com a idade começo a ter saudades): “Já o ganhaste?” e eu ficava sem saber o que dizer! «Não, pois não? Então vá, vamos lá abrir os tabuleiros!» Durante a noite tinha de se empilhar os tabuleiros onde estavam os tais figos para secar, e tapavam-se para não apanharem humidade, ainda que fosse Verão. A nossa primeira tarefa era ir espalhar os tabuleiros e depois é que vínhamos tomar o pequeno-almoço - ovos estrelados com azeite, bacon e café com leite. Depois, como a minha avó tinha vários terrenos, nós íamos para lá com a burra para transportar os figos e andávamos quilómetros a pé!

Tens recordações de infância muito diferentes da maior parte das pessoas que só tiveram contacto com a cidade.
M.J.A.: Fui também à festa dos tabuleiros em Tomar, eu e a minha irmã, fomos as duas desfilar.
E depois no fim da tarde podíamos ir para o tanque nadar, era abastecido pelo poço e depois servia para regar.

Que coisas te deixaram marcas cá dentro dessa infância que passaste próxima da tua avó, que memórias tens tu mais ligadas aos sentidos?
M.J.A.: O cheiro da terra quando vinha o Outono, a primeira chuva, aquele cheiro a terra molhada é dos cheiros que me faz mais feliz.

E sabores? Há bocado falaste do pequeno-almoço.
M.J.A.: Ah sim, e o “café pêto da avó”! A minha avó cozinhava a lenha e tinha aqueles tachos todos pretos por fora. Tudo o que cozinhava era a terra que dava, e os animais que ela criava. O café «pêto» não é café de saco nem das cafeteiras, é o café das velhas! Põe-se a água a ferver, tira-se, põe-se o café e depois põe-se mais um bocadinho no lume e quando aquilo vem por fora deita-se a água fria e fica ali a repousar... Esse café era magnífico. Depois aquelas saladas de pepino, de tomate, as sardinhas, o peixe tão bom!

E os teus pais como é que se conheceram?
M.J.A.: Os meus pais conheceram-se na faculdade... trabalhavam os dois na cantina! (risos) O meu
pai veio de Braga com 14 anos e a minha mãe veio para Lisboa com 12. Tinham ambos a
terceira classe, tiraram a quarta classe em adultos só para tirar a carta de condução. Eram
tempos muito austeros e diferentes e os meus avós puseram-nos a trabalhar em casa de pessoas, a servir.

Estamos a falar de que década?
M.J.A.: Dos anos 50.

Era essa a realidade de muita gente.
M.J.A.: De muita gente! Até que a minha mãe passou para a hotelaria, para cafés, restaurantes e depois chegou à cantina, foi trabalhar no Campo Grande, na Faculdade de Letras. Foi lá que se conheceram.

Que idade tinham?
M.J.A.: Cerca de 20 anos. Eles tinham amigos em comum e saíam todos. Até que um dia o meu pai pediu a minha mãe em casamento e ela disse que não, que eram só amigos. Quando ela disse isto, o meu pai embebedou-se e quis atirar-se para debaixo do comboio, mas a minha mãe lá aceitou e foi até hoje.
Não podia deixar de falar disto: houve duas pessoas importantes na minha vida desde criança que foram os meus padrinhos. Ele é tio do meu pai, meu tio-avô, vivia em Lisboa com a minha madrinha e era chefe de mesas no barco Vera Cruz. Foi o tio do meu pai que veio maiscedo para Lisboa e era o que tinha uma vida  melhor. Todos os meus tios, incluindo o meu pai, quando vieram para Lisboa também foram para casa dele. Quando a minha mãe casou com o meu pai também viveu lá em casa, e até aos 2 anos vivi em casa desses meus padrinhos que eram muito próximos de mim. Tinham uma filha que era deficiente e trataram-me sempre como outra filha. O meu padrinho faleceu tinha eu 15 anos, a minha madrinha eu já era casada com o Zé. Chegámos a namorar na casa da minha madrinha, na Penha de França, daí termos sido padrinhos da marcha popular da Penha de França durante 7 anos. Tudo o que eu tinha de extra, um brinquedo, era deles que vinha, faziam-me as vontadinhas todas. Aos fins-de-semana a minha mãe deixava-me ir para lá, as minhas primas também iam, e encontrávamo-nos lá.

Então eles fizeram um bocadinho aquele papel que alguns avós fazem?
M.J.A.: Sim, por isso é que eu disse que não podia deixar de falar deles, foram uma espécie de avós, pais, padrinhos, foi uma mistura.

E essa convivência com a filha que tinha deficiência mental, como foi?
M.J.A.: Todos os domingos, a partir dos meus 11 ou 12 anos, nós íamos ao cinema Odeon, que já não existe. As pessoas não estavam preparadas para lidar com a deficiência, nem eu... Ela às vezes fazia cenas na rua e eu, quando estava sozinha com ela, ficava um bocadinho envergonhada, não sabia lidar com a situação. Hoje seria de outra forma, com certeza. Lembro-me que íamos todos os dias às 18.00 à missa, à Igreja dos Anjos.

Então estas foram as pessoas nucleares da tua vida: a tua avó Beatriz, os teus padrinhos, e obviamente os teus pais.
M.J.A.: Com certeza, foram eles que fizeram a ponte entre mim e os meus avós, e todos foram importantes.

Este texto segue a grafia do Novo Acordo Ortográfico, contra a vontade da autora