Intemporal, o que está para além do tempo. Assim dito, faz-nos crer que tudo o que cabe no baú da intemporalidade vive numa condição quase imaterial. Não é o que se passa com a dezena de títulos que aqui recordamos. Neste sentido, intemporal porque, todos, nos contam histórias que cabem em muitos tempos. Naqueles em que foram escritos, quase todos na segunda metade do século XX, alguns já neste século XXI.

Mia Couto, Ondjaki, José Luís Peixoto, Dulce Maria Cardoso, Clarice Lispector, Teolinda Gersão, Germano Almeida, Carlos de Oliveira, João Aguiar e José Saramago, cabem neste pequeno - em número – elenco de autores reunidos que falam e escrevem a língua portuguesa. Independentemente da geografia desse português, em Portugal, Moçambique, Angola, Cabo Verde ou Brasil e do género abordado, do romance ao conto.

Outros – muitos – escritoras e escritores contemporâneos caberiam neste rol. Mas há que fazer escolhas e nunca são plenamente justas. Boas leituras.

“Jesusalém”, de Mia Couto

Escritor moçambicano

Publicado inicialmente em 2009, “Jesusalém” do escritor moçambicano Mia Couto (Beira, 1955), conta-nos a história de Silvestre Vitalício (ou Mateus Ventura) e a suas andanças longe do mundo, ou melhor, daquela parte do mundo por nós habitada. Face ao duro golpe da morte de sua mulher, Silvestre embrenha-se com os dois filhos num refúgio que, na obra do escritor galardoado com o Prémio Virgílio Ferreira, assume a forma de uma coutada de caça abandonada. Ai, o protagonista instala o seu reino e dá-lhe o nome de Jesusalém, o lugar onde o personagem aguarda o regresso de Deus.

Uma história que nos é trazida por um narrador próximo a Mateus Ventura, um dos filhos, Mwanito para quem este nosso mundo é o “Lado-de-Lá”, o desconhecido.

Resgatámos à estante 10 livros em língua portuguesa com histórias intemporais

“Os Transparentes”, de Ondjaki

Escritor Angolano

Em 2012 o escritor angolano Ondjaki, autor de livros como “O Assobiador” e “O Segredo do Soviético”, dava aos escaparates uma nova obra. Em “Os Transparentes”, o autor centra a narrativa na capital angolana, Luanda, urbe com as especificidades do pós-guerra.

Na obra que valeu a Ondjaki o Prémio José Saramago de 2013, é-nos trazido como elemento central um prédio, o do Largo da Maianga. É neste microcosmos que se encontram e desencontram os personagens criados pelo autor. Dois exemplos da capacidade inventiva de Ondjaki estão patentes no homem que inicia um processo de transparência física ou a de um carteiro que aspira a um veículo que lhe poupe as pernas estafadas. Um livro que combina diferentes registos, do lírico ao humorístico e ao sarcástico, trazendo-nos um retrato social surpreendente.

os transparentes

“Nenhum Olhar”, de José Luís Peixoto

Escritor Português

Em “Nenhum Olhar”, José Luís Peixoto, autor que foi Prémio José Saramago em 2001, convida-nos a visitar o seu Alentejo natal, onde nasceu em 1974 na aldeia de Galveias. Neste livro, editado pela Quetzal, onde uma pobreza quase extrema assume estatuto de personagem, Peixoto entretece histórias de homens e mulheres, endurecidos pela fome e pelo trabalho, de amor, ciúme e violência.

Uma paleta de protagonistas que nos oferece, por exemplo, o pastor taciturno que vê o seu mundo desmoronar-se quando o diabo lhe conta que a mulher o engana; o velho e sábio Gabriel, confidente e conselheiro; os gémeos siameses Elias e Moisés, cuja terna comunhão se degrada no momento em que um deles se apaixona; ou o próprio Diabo.

Um livro que conta, atualmente, mais de 20 edições em Portugal, tradução para quase trinta idiomas, estudado em universidades de diversos continentes.

nenhum olhar

“O Retorno”, de Dulce Maria Cardoso

Escritora Portuguesa

Ano, 1975. Local, Lisboa. Contexto, a descolonização traz para a Portugal mais meio milhão de pessoas. Os “retornados”, como ficaram conhecidos, não foram recebidos de braços abertos, antes com desconfiança e mesmo hostilidade. Em “O Retorno”, Dulce Maria Cardoso, nascida em 1964, em Trás-os-Montes, traz-nos Rui, de 15 anos, um rapazinho acabado de chegar de África. No livro, datado de 2011, editado pela Tinta da China, acompanhamos a família de Rui, num quarto de hotel de cinco estrelas pejado de outros “retornados”.

“A adolescência torna-se uma espera assustada pela idade adulta: aprender o desespero e a raiva, reaprender o amor, inventar a esperança. África sempre presente mas cada vez mais longe”, lemos na recensão à obra. Páginas escritas por uma autora que com seis meses deixou a sua terra natal, no navio Vera Cruz, rumo a Angola e que aos 14 anos, já em Portugal, aspirou ser escritora. Formou-se em direito, foi advogada, sem perder o fio condutor da escrita.

o retorno

“Uma Abelha na Chuva”, de Carlos de Oliveira

Escritor Português

Nascido em 1921 no Brasil, Carlos de Oliveira, filho de emigrantes portugueses, conhece Portugal ainda em tenra idade, com dois anos. Em 1953, o escritor, já amadurecido, oferece aos escaparates o livro “Uma Abelha na Chuva”, editado atualmente pela Assírio e Alvim. Na obra, o autor entrega-nos personagens inesquecíveis, como Álvaro Rodrigues Silvestre e sua mulher, Dona Maria dos Prazeres. Isto num Portugal provinciano, no dealbar do século XX. Uma narrativa que se centra na aldeia de Montouro, num início de outono frio e chuvoso e com um anunciado regresso, nada desejado pelos protagonistas.

Um livro ao corrente de uma escrita de um autor que em 1978 recebeu o Prémio Cidade de Lisboa. Viria a falecer em 1981.

“A abelha foi apanhada pela chuva: vergastadas, impulsos, fios do aguaceiro a enredá-la, golpes de vento a ferirem-lhe o voo. Deu com as asas em terra e uma bátega mais forte espezinhou-a. Arrastou-se no saibro, debateu-se ainda, mas a voragem acabou por levá-la com as folhas mortas”.

Uma Abelha na Chuva

“Laços de Família”, de Clarice Lispector

Escritora Brasileira

Jornalista e escritora de origem ucraniana naturalizada brasileira, Clarice Lispector, autora profícua de romance, ensaio e contos, está no panteão dos escritores maiores de língua portuguesa do século XX.

“Laços de Família”, escrito na década de 1940 e publicado pela primeira vez nos anos de 1960 no Brasil, reúne 13 contos da escritora que ainda em criança, com os seus pais, família judia, foge da devastação causada pela guerra civil no seu país natal.

Na edição portuguesa da Relógio D´Água vamos encontrar neste “Laços de Família” contos como "Devaneio e embriaguez duma rapariga", "Amor", “A menor mulher do mundo", "Preciosidade" ou o "O crime do professor de matemática". No fundo, também os laços familiares ou de proximidade nos podem deixar cativos.

Narrativas que são uma preciosa entrada na obra desta autora que nos deixou dezenas de títulos dirigidos a adultos e crianças.

laços de família

“Um Homem Sem Nome”, de João Aguiar

Escritor Português

É de 1986 este “Um Homem Sem Nome” do escritor e jornalista português João Aguiar, livro que nos devolve, volvidos 34 anos, uma narrativa intemporal e uma leitura compulsiva. Dá-nos o mote o autor falecido em 2010: "Era um deserto imenso. A sua aridez alastrava por planícies, montes e vales que um dia haviam sido férteis".
A partir destas palavras, atravessando um território de proporções épicas, avança este singular trovador, um poeta e aventureiro que não quer ter nome. Uma obra que nos traz um mundo em mutação e que pode ser lida como uma interessante alegoria ou, “simplesmente”, como uma narrativa de aventuras. Obra editada em Portugal pelas Edições ASA e que já conta com 14 edições.

Um Homem Sem Nome

“A Mulher que Prendeu a Chuva”, de Teolinda Gersão

Escritora Portuguesa

“A Mulher que Prendeu a Chuva” é uma coletâneas de contos, mais precisamente 14, publicada pela primeira vez em 2004 e com autoria de Teolinda Gersão. Na obra, a escritora e também professora, nascida em 1940, traz-nos histórias do quotidiano, embora com ponte para mundos oníricos, fantásticos, terríveis ou absurdos. Isto sem que percamos ligação a terra neste edição da Sextante.

"Corria para a frente, na noite, no dorso de um cavalo enlouquecido, que me arrastava, para nenhum lugar. Não havia pontos de referência na paisagem, cavalgávamos na desfilada, depressa, cada vez mais depressa, e no entanto sem avançar no espaço. Não sabia onde estava e recordava-me só vagamente do meu nome. Mas não esquecera o teu. Nem o facto de que estavas morto", lemos no conto “Cavalos Noturnos”.

a mulher que prendeu a chuva

“O testamento do Sr. Napumoceno da Silva Araújo”, de Germano Almeida

Escritor cabo-verdiano

Em 1997 o cinema via transposta para a tela, pela mão de Francisco Manso, a obra publicada oito anos antes pelo escritor de Cabo Verde, Germano Almeida, nascido em 1945. Este que foi Prémio Camões em 2018, inaugurava a sua obra literária com “O testamento do Sr. Napumoceno da Silva Araújo”, escrito de 1989.

No livro, o Sr. Napumoceno, comerciante do Mindelo, na Ilha de São Vicente, em Cabo Verde, casa a sua reputação pessoal com a do negócio. Em suma, bons, íntegros, sérios, sem vícios e em prosperidade. Contudo, a leitura das páginas do seu testamento lança “uma nova luz sobre a vida e a pessoa do ilustre extinto”.

Uma obra publicada em Portugal pela editora Caminho e que nos entrega uma figura fascinante, rica, complexa e contraditória.

o testamento do senhor napumoceno

“As Intermitência da Morte”, de José Saramago

Escritor Português

“No dia seguinte ninguém morreu”. Com esta frase José Saramago, autor português nascido em 1922 (faleceu em 2010) e Prémio Nobel da Literatura em 1998, dá-nos mote para uma obra que parte de uma hipótese perturbadora, a ausência da morte.

Na obra de 2005, editada pela Porto Editora, vamos encontrar um autor fiel ao estilo a que nos habituou, mordaz, sarcástico, irónico e amplamente crítico face a alguns aspetos da nossa sociedade. Um título onde não escapa a Igreja, o Governo, o Clero, o Jornalismo, os economistas, as famílias. Em suma, a morte mesmo quando se ausenta está em todo o lado.

No caso vertente um afastamento da morte que é temporário. Em momento preciso do enredo, a Morte anuncia-se por carta enviada à redação de uma televisão e lemos: “A partir da meia-noite de hoje se voltará a morrer tal como sucedia, sem protestos notórios (...) ofereci uma pequena amostra do que para eles seria viver para sempre (...) a partir de agora toda a gente passará a ser prevenida por igual e terá um prazo de uma semana para pôr em dia o que ainda lhe resta na vida”.

A partir deste trecho todo o enredo ganha um novo rumo.

As Intermitência da Morte