Durante uma dúzia de anos, Martin Pistorius tornou-se refém de um corpo inerte. Lentamente, recuperou a consciência, reaprendeu a comunicar e é hoje um homem independente e realizado. Era um menino ativo até que um dia o seu corpo deixou de funcionar. Em apenas 18 meses, perdeu a autonomia e ficou condenado à maior das penas. Ficar preso a uma cadeira de rodas para o resto da vida.

Gradualmente, foi recuperando a consciência, ainda que fisicamente se mantivesse incomunicável. Viveu uma década refém do silêncio físico até que, um dia, uma pessoa especial encontrou uma faísca no seu olhar. Martin Pistorius desafiou a ciência, seguiu o sonho de voltar a viver, comunicar e ser feliz. A mãe, desesperada ao ver o estado vegetativo do filho, chegou a desejar que morresse.

Não foi o que sucedeu. A batalha foi difícil mas venceu-a. Hoje, licenciado, empreendedor e casado, Martin Pistorius é, aos 41 anos, em 2017, a imagem de um homem realizado, lutador e ambicioso, e «Quando eu era invisível», o livro que escreveu, publicado em Portugal pela editora Nascente, é um extraordinário documento de coragem e esperança.

De normal a invisível

Até aos 12 anos, Martin Pistorius era um rapazinho normal, tímido, feliz e saudável. «Adorava eletrónica e o meu talento permitira-me instalar um sistema de alarme para proteger o meu quarto do meu irmão e da minha irmã mais novos, o David e a Kim. Em janeiro de 1988, cheguei a casa, depois das aulas, queixando-me de dores de garganta, e nunca mais voltei à escola», recorda.

«Deixei de comer e comecei a dormir horas a fio», relembra. «Era doloroso caminhar. O meu corpo enfraqueceu à medida que fui deixando de o usar, e a minha mente também. Comecei por me esquecer dos factos, das tarefas habituais e até dos rostos. A minha fala foi-se deteriorando, esquecia-me de quem era e de onde estava», acrescenta.

«Proferi as últimas palavras cerca de um ano depois do início da doença, quando jazia na cama de hospital», conta ainda. «Quando casa?», perguntou à mãe. Ao princípio, os médicos pensaram que os seus problemas eram psicológicos. «Passei várias semanas num serviço psiquiátrico», afirma.

«Só quando fui para as urgências, devido a uma desidratação, aceitaram que a minha doença era física. Levaram cerca de um ano a confessar que tinham esgotado as opções de tratamento. Diziam que sofria de um distúrbio neurológico degenerativo de causa e prognóstico desconhecido e aconselharam os meus pais a colocarem-me numa instituição», refere Martin Pistorius.

Um lento despertar

Durante vários (longos) meses, Martin Pistorius  fequentava um centro de cuidados mas todas as noites regressava a casa. «Passei anos no meu mundo envolto em trevas. Jazia como uma casca oca, inconsciente.  Até que, certo dia, comecei a regressar. Quando recuperei a consciência, não compreendi plenamente o que me sucedera», desabafa.

«Assim como um bebé que, ao nascer, não sabe que é capaz de controlar os seus movimentos, também eu não pensava naquilo que era ou não capaz de fazer. Os meus pensamentos precipitavam-se sem que alguma vez pensasse traduzi-los por palavras e não percebia que o corpo que via, ora a sacudir-se, ora imóvel, era o meu. Não estava paralisado. O meu corpo movia-se, mas independentemente de mim», diz.

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O (re)despertar da consciência

Os dias que se sucederam não foram fáceis. «Gradualmente tomei consciência de cada dia e de cada hora. Esquecia-me da maior parte deles, mas havia momentos em que via a história a desenrolar-se. O juramento de Nelson Mandela como presidente da África do Sul, em 1994, é para mim uma recordação nublada, ao passo que a morte de Diana, em 1997, é bem clara», recorda.

«Penso que a minha mente começou a despertar por volta dos 16 anos e, aos 19, ficou de novo intacta. Sabia quem era e onde estava, e compreendia que a minha vida me fora roubada. Para as outras pessoas, que não os meus pais, os funcionários dos vários centros que frequentei, era como uma planta envasada. Toda a gente estava tão habituada a que não estivesse ali que nem repararam quando voltei a estar presente», diz.

Um anjo chamado Virna

Durante a batalha, houve pessoas que o marcaram. «Ao princípio só sabia que Virna nunca mostrava os dentes quando sorria. Começara a trabalhar no centro de cuidados como assistente e falava comigo, como faria com alguém da sua idade. Nunca tivera isso antes, parecia que estava a travar a minha primeira amizade», confessa Martin Pistorius.

«Dois anos mais tarde, Virna viu um programa de televisão acerca de uma mulher que fora ajudada a comunicar após ter ficado muda, devido a um acidente vascular cerebral (AVC). Participou num open day de um centro próximo, onde ouviu especialistas explicar o que se poderia fazer para ajudar pessoas que não conseguem falar, e regressou entusiasmada para me contar o que aprendera», diz.

«Usam interruptores e aparelhos eletrónicos para ajudar a comunicar», contou-lhe. «Achas que consegues fazer isso, Martin? Estou certa de que sim. A sua fé em mim era tão forte que o meu dever era compensá-la», escreveu no livro.

O regresso à comunicação

Martin Pistorius entrou no Centro de Comunicação Aumentativa e Alternativa (CCAA) da Universidade de Pretória em julho de 2001. «Depois de vários testes, uma terapeuta mostrou-me uma caixa preta, cujo topo estava dividido em pequenos quadrados, cada um deles com um símbolo», relembra. «Isto é um aparelho de comunicação chamado Macaw», disse.  «Se aprenderes a usar os interruptores, vais ser capaz de comunicar», acrescentou.

«A minha vida começa finalmente.  Na companhia incansável da minha mãe, descubro um novo mundo com um computador adaptado e um software de comunicação.  Na altura, era analfabeto  e dependia de símbolos.  Foi uma aprendizagem desafiante e trabalhosa,  à qual dediquei, no mínimo, quatro horas por dia, ao longo de oito meses. Por vezes, era frustrante. Noutras era fantástico. Era a minha única oportunidade», sabe hoje.

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A entrada no mercado de trabalho

Ao longo de todo o processo, as dúvidas foram uma constante. «Cheguei a um ponto em que era capaz de comunicar bem, mas algo inesperado aconteceu e comecei a pensar qual era o meu objetivo? Posso comunicar, mas é só isto? Ansiava por algo mais. Não sabia como lidar com esses sentimentos», escreve no livro.

«Já tinha acontecido muita coisa, os meus pais tinham investido tanto tempo e dinheiro, que me censurei por me sentir assim. Os meses sucederam-se e, talvez por intervenção divina, as coisas mudaram. Deram-me a oportunidade de trabalhar no centro de saúde que partilha um edifício com o meu centro de cuidados. Estava entusiasmadíssimo. Era o meu primeiro trabalho!», refere, com orgulho.

Uma mão-cheia de sonhos

Ao longo do tempo, Martin Pistorius foi conquistando objectivos, como refere no livro que conta a sua história. «Sonhava ter o meu próprio negócio. Faz agora [em 2017] oito anos que tenho uma empresa de web design. Sonhava com um curso universitário. Formei-me em Ciência Computacional na Universidade de Hertfordshire [no Reino Unido]», orgulha-se.

«Fiquei surpreendido e muito grato quando fui escolhido para receber uma bolsa de estudo da Google e pude visitar o seu escritório em Zurique [na Suíça]. Sonhava apaixonar-me e casar. Conheci a Joanna via Skype, apaixonámo-nos instantaneamente e casámos 18 meses depois. Estamos casados há seis anos», revela.

A metade que o completa

Ao passar anos isolado do mundo, Martin Pistorius convenceu-se de que ficaria sozinho para sempre. Até que surgiu Joanna. «Nunca conheci uma pessoa que me aceitasse tão completamente e que tivesse tanta paz dentro de si. A Joanna não preenche os espaços vazios entre nós com uma tagarelice sem sentido. Em vez disso, deixamo-nos levar pela corrente ao estarmos simplesmente juntos», sublinha.

«Há certos momentos em que quase salto de surpresa quando ela me toca. Os meus dedos contraem-se quando ela me acaricia a mão, o meu maxilar estremece quando beija os meus olhos. É como se o meu corpo quase não conseguisse acreditar na doçura dela. Nunca tive alguém que gostasse de estar comigo. É o mais simples, mas o mais perfeito, dos sentimentos», refere.

Os oito mandamentos de Martin Pistorius

1. Sonhem sempre. Tenham em conta que, seja qual for o sonho, é o vosso.

2. Descrevam-no ou peçam a alguém que o faça por vocês, em palavras ou imagens.

3. Recorram a um amigo, alguém que consiga apoiar-vos e ajudar a alcançar o objetivo.

4. Planeiem as decisões. Pode ser intimidante, mas é preciso começar por algum lado.

5. Se não estiverem seguros do caminho a seguir, peçam ajuda. Falar com alguém pode trazer novas ideias e soluções.

6. Pensem na recompensa que poderão dar a vocês próprios sempre que ultrapassarem cada dificuldade rumo ao objetivo.

7. Falem sobre os vossos sonhos! Nunca se sabe quem estará a ouvir...

8. Por fim, nunca desistam. Não importa o quão inverosímeis os sonhos possam parecer.

Texto: Carlos Eugénio Augusto com Artur (fotografia)