Ana Rebelo recorda-se bem. «Quando transpus a porta de vidro do consultório, ainda trazia em mim o gosto da praia. Estávamos em setembro, num bonito dia de sol e tinha acabado de chegar de três semanas de férias. Sentei-me na sala de espera, tranquila e, quando chamaram o meu nome, entrei calmamente no gabinete médico», relata no livro «A Mãe da Maria», publicado pela editora A Esfera dos Livros.

«Estava grávida de 27 semanas e estava de volta ao médico para fazer uma ecografia de rotina», relembra. «Um passo normal de uma gravidez feliz, sossegada e sem sobressaltos», como o descreve. «Assim que olhei para o monitor do ecógrafo, apeteceu-me perguntar se estava tudo bem, mas contive a curiosidade», desabafa.

«Sabia que aquele exame implicava alguma concentração para uma avaliação correta da minha filha e não queria atrapalhar. Não sei quanto tempo passou até perceber que havia alguma coisa errada», acrescenta. «A bebé está com uma restrição de crescimento», ouviu. «Lembro-me do tom, da cadência e da expressão com que a médica me disse isto», confessa na obra.

Do sonho ao pesadelo

A tranquilidade do casal sofreu um rombo. «Os dias seguintes foram preenchidos entre novas consultas e mais exames», prossegue Ana Rebelo. «O meu marido, Jorge, e eu pedimos ajuda a tudo e a todos», revela. «O meu médico obstetra ficou de cabeça perdida», revela no livro que escreveria anos depois.

«Sabia que a sua equipa deixara escapar aquele pormenor determinante e revelou-se incapaz de nos acompanhar durante aquelas primeiras semanas à procura de respostas. Quando percebi que aquele problema já deveria ter sido detetado, na ecografia das 12 semanas, o meu mundo desabou», assume.

A partir de certa altura, todas as opiniões que foram recolhendo apontavam para o mesmo. Não eram totalmente conclusivos mas também estavam longe de ser tranquilizantes. «Pelos exames, tudo indicaria que a bebé teria uma alteração genética que só uma amniocentese poderia esclarecer», afirma Ana Rebelo.

A confirmação da translocação X:13

A confirmação viria pouco depois. «Foi o Jorge quem foi buscar o resultado da amniocentese, mas foi a mim que coube abrir o envelope. Sabia que deveria fazê-lo numa consulta acompanhada pelo nosso médico, só que não aguentei. Nenhum de nós sabia o que significavam as palavras escritas naquela folha», recorda.

O relatório dizia Translocação X:13, «com mais umas letras e uma data de números pela frente», descreve. Sem qualquer observação ou comentário. «Dos médicos com quem falámos na altura, nenhum deles tinha alguma vez ouvido falar daquela deficiência», refere, um desconhecimento que não descansou o casal.

«Ao mesmo tempo que se começou à procura de casos iguais ou semelhantes descritos em literatura médica, foi-nos pedido que fizéssemos um estudo genético para perceber se aquela condição poderia ser herdada de um dos progenitores. É raro existir uma deficiência genética, ou cromossomopatia de novo, que não é herdada, mas pode acontecer. A Maria é a prova disso», sublinha Ana Rebelo.

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Uma vida a prazo

Depois da confirmação, uma nova surpresa. «Quando se tornou evidente que aquele era um caso único a nível mundial, e perante a nossa insistência em querer saber mais, o foco passou para as particularidades dos órgãos vitais, nomeadamente o coração, os pulmões, os rins, o fígado... E rapidamente se percebeu que o coração da Maria não era igual aos outros», avança Ana Rebelo.

«Tinha o lado esquerdo hipoplásico, com uma estrutura muito pequena e pouco desenvolvida para fornecer o fluxo de sangue suficiente para as necessidades do seu corpo. Nessa altura, recebi a notícia de que a minha filha tinha um prognóstico de vida de apenas 48 horas. Tinha dentro de mim uma vida a prazo», desabafa a autora.

O seu primeiro obstetra propôs-lhe interromper a gravidez em Londres. «Mas quando me disseram que teria de ser forte porque, no regresso, tinha de trazer o caixão da minha filha comigo, deram-me um valente murro no estômago. Quem sabe se isto me tivesse sido dito de outra forma, a minha decisão pudesse ter sido outra. O certo é que não foi. E, hoje, fico agradecida por isso», diz.

A bebé que nasceu com sede de viver

Maria nasceu a 17 de dezembro de 1999, pouco depois das seis da manhã. «Bastante pequena e com apenas 2.100 gramas», relembra a mãe. «Quando a fui ver, olhei para as suas mãos e, instintivamente, pus a minha dentro da incubadora. Assim que lhe toquei, apertou-me o dedo. Ela reagiu e isso surpreendeu-me», admite.

«Foi um gesto tão delicado e carinhoso, tão confiante e expressivo, que senti um conforto extraordinário. Dado o diagnóstico de coração esquerdo hipoplásico, logo na altura do nascimento deram-lhe um medicamento para manter a circulação sanguínea idêntica à fetal. A situação foi revertida, mas surgiu uma nova preocupação, a hipertensão pulmonar», diz.

O medicamento que o bebé tinha tomado impediu o canal arterial de fechar e a pressão sanguínea estava anormalmente alta nas artérias dos pulmões. «O problema da artéria foi depois corrigido através de uma operação, mas o facto de ter uma hérnia no hiato provocava-lhe refluxo, o que a fazia vomitar tudo o que comia», diz Ana Rebelo.

Dez dias depois, a bebé era operada novamente. «Os dois meses que se seguiram foram a prova de que o Jorge e eu tínhamos feito a escolha certa», pode ler-se no livro «A Mãe da Maria». A razão para o regozijo não podia ser de maior felicidade. «A Maria duplicara de peso», afirma Ana Rebelo.

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A nova batalha que o casal teve de enfrentar

Aos sete meses, para felicidade dos pais, a bebé foi finalmente para casa. «Desde que o peso da Maria aumentara, começou a falar-se menos em esperança de vida», sublinha Ana Rebelo. Até que o impensável aconteceu. «No terceiro dia, enquanto lhe mudava a fralda, reparei que havia qualquer coisa no olho direito. Uma enorme massa branca», constatou.

«Pensei imediatamente que estava louca, a ver coisas a mais. E entrei em pânico! Antes da Maria nascer, tinha passado muitas horas na internet em pesquisas e ficara a saber que uma alteração no cromossoma 13 poderia provocar um retinoblastoma, um tumor no olho. Em agosto de 2000, oito meses depois de nascer, a Maria chegava a Lausanne, na Suíça, para ser operada e ficar definitivamente sem o olho direito», refere.

«O objetivo era retirar o mais rapidamente o tumor para ver se, por se acreditar que ainda estava muito localizado, evitava que a Maria precisasse de fazer quimioterapia. A previsão dos médicos era de que em dez dias pudesse regressar a casa. Mas os dez dias transformaram-se em 30 e, um mês depois de voltarmos para Portugal, foi-nos dito que ela iria precisar de fazer seis ciclos de quimioterapia», diz.

A chegada dos irmãos

Durante o terceiro ciclo de quimioterapia de Maria, Ana Rebelo descobriu que estava grávida. «O Tomás nasceu no verão, umas semanas depois de a Maria ter alta do IPO. Durante os primeiros meses, a Maria teve de ser internada algumas vezes e, desde cedo, que ele se habituou a esse entra e sai constante da irmã», recorda a mãe.

«Inicialmente, tenho perfeita noção de que ele não percebia nada, mas quando tinha nove meses e a Maria passou por um internamento mais prolongado, o Tomás deixou de fazer aquilo de que mais gostava, comer. Também deixou de dormir. Ficou de tal forma apático que o Jorge e eu pensámos que teria de ser internado para ficar perto da irmã», desabafa.

«Essa foi a primeira altura em que compreendi que entre eles havia uma ligação eterna. O tempo foi passando e rapidamente o Tomás e a Maria ficaram do mesmo tamanho, já que a Maria crescia a uma velocidade muito diferente. Passeava-os aos dois num carrinho de gémeos e levava-os para todo o lado», descreve Ana Rebelo.

Descobrir que estava, mais uma vez, à espera de bebé trouxe-lhe uma alegria profunda. «Depois de uma cesariana muito tranquila, a Matilde nasceu com três anos de diferença do Tomás e quase cinco da Maria», afirma Ana Rebelo. A nova dinâmica familiar daria origem a uma nova fase do casal, gerando novos desafios e também novos dilemas.

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O problema da inclusão

A educação familiar foi um deles. «Resolvi inscrever os três no mesmo colégio, para ganhar economia de escala e ter mais hipóteses de que pelo menos um aceitasse a Maria. Não exagero se disser que bati à porta de todos os colégios de Lisboa», recorda. «Mas de todos ouvi a mesma resposta cobarde. Não tinham vaga!», critica Ana Rebelo.

«Era curioso porque havia sempre lugar para o Tomás e para a Matilde», sublinha a mãe de três. «A certa altura, descobri que ia abrir um colégio novo em Lisboa», conta. «Uma vez mais, a Matilde e o Tomás foram aceites e a Maria não. Pedi que me marcassem uma reunião com a direção», revela Ana Rebelo.

«Tenho a certeza de que não contavam com o facto de eu conhecer a lei e de saber que uma criança deficiente, desde que haja vaga, tem a primeira prioridade e que uma escola é obrigada a aceitá-la. Talvez nem 45 minutos depois da reunião, recebi uma chamada do colégio a dizer que aquilo que acontecera fora um mal-entendido. Foram obrigados a aceitar a inscrição da Maria», regozija-se.

Um abraço especial

Quando escreveu o livro, Ana Rebelo acabou por fazer um balanço. «Quando olho para os últimos 16 anos, apercebo-me de que a maneira que encontrei para quebrar a maioria das barreiras e abrir portas foi fazendo cara de má e deixando que a Maria surgisse logo depois de mim para conquistar todos aqueles com quem se ia cruzando», redigiu na altura.

«Entrei sempre com a melhor das intenções, claro está, mas se as coisas não corriam como deveriam, recorria à lei e às fórmulas institucionais, sabendo que a partir do momento em que entregasse a minha filha, ela iria ter a mestria de derreter toda a gente. E a verdade é que resultou sempre», afirma Ana Rebelo.

«A Maria entrega-se num abraço e fá-lo de todas as vezes que entrelaça com carinho os seus braços delicados à volta do pescoço de alguém. Esta entrega é dos gestos mais extraordinários que já vivi porque até hoje nunca a senti com mais ninguém. Um amigo chama-lhe o melhor abraço do mundo», desabafa a mãe da adolescente.

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O que a mãe aprendeu com a filha

Ana Rebelo recusa-se a ter uma visão redutora. Muito menos hoje. «A Maria tem 97% de incapacidade e um atraso mental e motor muito profundo, mas porquê defini-la dessa forma?», questiona. «A Maria é a nossa primogénita aquela que, mesmo quase sem falar, diariamente nos ensina o verdadeiro sentido da vida», assegura a mãe da adolescente.

«Nestes 16 anos, aprendi muito mais com a Maria do que lhe ensinei, entre outras coisas, que ser feliz é uma escolha, que podemos comunicar sem falar, que é preciso festejar cada vitória, seja ela grande ou pequena, e que é simples falar sobre (e aceitar) as diferenças», afiança Ana Rebelo. «Tenho a certeza de que se fosse uma mãe zangada, os meus filhos também o seriam», diz.

«A minha forma de estar reflete-se neles e, por consequência, eles respondem ao mundo da mesma maneira que eu», acrescenta ainda. «Escolhi ser agradecida», assume a autora do livro confessional que escreveu, onde relata a sua experiência. Uma obra que pretende ajudar pais que lidam diariamente com as doenças raras dos filhos.

Texto: Catarina Caldeira Baguinho e Luis Batista Gonçalves (edição digital) com Artur (fotografia)