Quer fazer a diferença e ir contra a espuma dos dias que correm, procurando alterar realidades com que se foi confrontando ao longo da sua experiência de 12 anos como embaixadora da Boa Vontade do Fundo das Nações Unidas para a População.

Para o fazer, conta com a a visibilidade que uma carreira de 21 anos já lhe proporcionou.

Espera que o mediatismo alcançado com programas como «Chuva de estrelas», «Operação triunfo», «Catarina.com» ou «Caça ao tesouro» e as reportagens no terreno para «Príncipes do nada» lhe abra portas para os apoios e parceiras que a associação Corações Com Coroa, que apresentou publicamente no início de novembro de 2012, necessita para os projetos de apoio social que pretende implementar. «Precisamos uns dos outros», refere o manifesto de apresentação da nova associação.

«Mais do que uma referência, queremos ser parceiros desta missão de ter os direitos humanos de cada pessoa no centro das decisões políticas, programáticas, de marketing ou afetivas», sublinha ainda o documento. Em declarações aos jornalistas presentes na apresentação pública da instituição, a atriz e apresentadora de televisão explica o que a move, revela qual vai ser o seu papel e quais as ações que pretende desenvolver.

O que representa para si a criação desta associação?

A Corações Com Coroa (CCC) é a concretização de um projeto que, no fundo, vem no seguimento de 12 anos a trabalhar com o Fundo das Nações Unidas para a População como voluntária e também do trabalho de recolha da realidade que tenho feito no terreno e que me toca diretamente ao coração. O nome da associação tem também muito a ver com isso.

Para os «Príncipes do nada» [programa transmitido pela RTP], tenho feito reportagens e documentários, quer nos países em desenvolvimento quer aqui em Portugal, sobre realidades portuguesas ao nível das populações mais vulneráveis e em risco e, portanto, no fundo, isto acaba por ser o seguimento. Achei que, de alguma forma, esta minha missão na vida, porque é mesmo a missão da minha vida, é estar atenta aos outros e contribuir para a sociedade civil, com o lado mais mediático, para uma melhoria da promoção dos direitos humanos e da cidadania.

Achei que é era um seguimento lógico. Passei a acreditar porque muita gente me disse que confiava em mim e nas pessoas que tenho em meu redor. Passei a acreditar que isto fazia mesmo sentido nos tempos complicados que correm. Se desistirmos todos, o que há de ser do nosso país e da própria Europa, no fundo?

Qual vai ser o seu papel nesta associação?

Esta é uma associação que já está entregue à sociedade civil. Eu darei sempre, enquanto presidente voluntária, a cara e o compromisso de seriedade e transparência. Quero que toda a gente escrutine a associação. Quero que seja transparente e rigorosa. Eu irei estar aqui a gerir as vontades e as pessoas que têm o saber e vou continuar a fazer o meu trabalho na área da comunicação.

Este é um projeto de vida?

É um projeto de vida. É um legado que deixo em termos daquilo que acredito, que é a promoção da cidadania. Todos nós temos uma missão. Vós, enquanto comunicação social, e eu, enquanto colega vossa e figura pública, temos a obrigação de exercer os nossos quesitos em relação aos nossos direitos mas também de exercer os nossos deveres e um dos nossos deveres é estarmos atentos aos outros e podermos denunciar e contribuir para a reflexão.


No fundo, esta é a minha missão. É a missão que eu vou deixar cá. Já vou quase com meia vida e faz sentido continuar a trabalhar estas áreas. As áreas da CCC são as áreas que eu trabalho há 12 anos nos países em desenvolvimento mas também em Portugal. Apesar de, nesses países em desenvolvimento serem mais dramáticas e contrastantes, há muitas coisas aqui em Portugal que não estão resolvidas, nomeadamente a questão da igualdade de género e a questão da violência.


A questão da discriminação, a questão do incumprimento dos direitos humanos, a questão dos direitos das crianças não estarem também a ser respeitados, porque há situações de violência e há negligência, que às vezes é uma diferente forma de violência... Eu não sou uma técnica nem uma política de intervenção e de prevenção mas estas são áreas que eu tenho trabalhado. São áreas onde me sinto confortável e onde acho, sinceramente, que trabalhando em rede com outras instituições, posso fazer a diferença.


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Até porque não é propriamente alheia a este tipo de realidades. Tem lidado de muito perto com muitas delas...

Eu, nestes 12 anos, tenho trabalhado em duas frentes. Nos «Príncipes do nada», tenho alertado. Tenho procurado dar à sociedade civil e aos que são decisores políticos informações rigorosas daquelas realidades ao nível da educação, do desenvolvimento e da saúde, essencialmente.

Contribuo assim e é uma forma de contribuição. Enquanto embaixadora da Boa Vontade do Fundo das Nações Unidas para a População, o que faço é ir ao terreno, aos países em desenvolvimento.

Lá, faço trabalho de campo e, depois, faço os relatórios daquilo que vi e daquilo que acho que pode ser importante. E depois, e isso faço-o com muita regularidade, vou falar com os decisores políticos dos vários países. Normalmente, quando faço uma visita de trabalho, tenho sempre reuniões com ministros da saúde, ministros da educação e/ou presidentes, para lhes transmitir as nossas notas.

Que áreas normalmente abrange o seu trabalho de intervenção social?

O trabalho de campo que desenvolvo normalmente abrange a área da saúde materna, a saúde neonatal... Abrange todas as áreas da não discriminação, da não violencia, a promoção de uma cultura de solidariedade e de inclusão social, a igualdade de géneros...

Agora vai fazê-lo em Portugal...

Agora em Portugal, sim. O sonho é que, agora que inauguramos a nossa sede aqui em Lisboa, fiz projetos que foram aprovados pela direção da CCC e para os quais estamos à procura de parceiros. Queremos idealizar um projeto que se chama «Espaço Lugar no Mundo». Imaginemos, sempre numa perspetiva positiva, que daqui a uns tempos há outros lugares no mundo que nos vários lugares do mundo, nomeadamente nos que falam português.

Essa tem sido a minha batalha desde sempre. Acho que temos responsabilidades históricas para com os países que falam português. Vamos avançar devagarinho, um dia de cada vez. Não somos como os políticos. Não temos de apresentar já uma lista. Eu não sou política. Não tenho essa lista. Tenho é dois ou três projetos para os quais irei mobilizar vontades, atrair energias e seduzir parceiros, porque é esse também o meu trabalho como presidente da associação.

Já temos o primeiro projeto. Assinamos um protocolo com a Sonae MC para a divulgação e a promoção de um prémio de comunicação, que se chama Prémio Corações Capazes de Construir, pelos direitos humanos, pela cidadania e pelo desenvolvimento. É um prémio anual e tem duas categorias. Uma de jornalismo e outra de campanhas. Os trabalhos que sejam publicados e que manifestamente exponham estas preocupações podem concorrer.

Referiu a não discriminação, a não violencia, a inclusão social, a igualdade de géneros... Há algum destes temas que a toque mais particularmente?

Todos! Eu já vi muita coisa... Sobretudo lá fora! Se não me tocassem todos em igual percentagem, acreditem que eu não estaria aqui, porque este trabalho é completamente voluntário e exige noitadas e noitadas de reuniões. Exige que se criem grupos de reflexão para podermos trabalhar com segurança e, se isso não acontecesse, eu não estaria aqui, porque são horas que se perdem com a família ou que se ganham num outro ponto de vista e, portanto, é mesmo um compromisso.


Se estas questões não me tocassem e se eu não soubesse que são mesmo verdadeiras, se eu não soubesse que sou uma privilegiada em relação a todas essas pessoas... Digo pessoas, não digo só mulheres, evidentemente... Eu não tenho que passar por isso. Não tenho que o sentir na pele. Tenho que ser uma boa e atenta observadora e é o que eu sou. Tenho que ter a capacidade de me sensibilizar e isso, felizmente, eu tenho.

Em relação ao projeto «Espaço Lugar no Mundo», que pretende ser um espaço físico de apoio a crianças, adolescentes e crianças em situações de risco, já existe alguma coisa em concreto ou, neste momento, é apenas um projeto no papel?

É um dos projetos que estão orçamentados. Está desenhado e concretizado no papel mas é, evidentemente, um projeto que precisa de parceiros que se disponibilizem. Precisa de um sítio e de lugar, de um espaço físico com as tais salas devidamente preparadas para receberem esse tipo de valências, que serão gratuitas para a população que será diagnosticada em rede, quer através de escolas quer de centros de saúde quer das autarquias. São essas entidades que nos vão direcionar as pessoas que mais necessitam, nomeadamente crianças, jovens e mulheres. Mas esse espaço físico tem que existir.


Tem que ser um parceiro que queira ceder-nos esse espaço e, depois, tem que existir o financiamento para pagar às pessoas que vão dar estas valências. São pessoas que têm, evidentemente, que receber. Para ter um espaço físico aberto todos os dias, essas pessoas não podem ser apenas voluntárias. As voluntárias irão passar por lá para desenvolver outro tipo de atividades. Vamos recorrer muito a bancos de voluntariado. É também, aliás, um dos nossos projetos fazer formação de voluntariado. Mas tem que haver aqui um suporte financeiro que sustente esse espaço.


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A CCC tem um plano de atividades aprovado há alguns meses. De quanto dinheiro é que vão precisar para o cumprir?

Não vou aqui revelar quanto é que custa cada projeto.

Mas existe um valor global?

A associação começou com um donativo meu para iniciar todas as burocracias inerentes ao arranque da associação. Só fazia sentido assim.

É assim que estou na vida, é assim que faz sentido para mim e o meu trabalho é totalmente voluntário.

Passada essa fase, para nos instalarmos necessitavamos de uma sede. Fizemos um protocolo com a Câmara Municipal de Lisboa, à semelhança de outros protocolos que a autarquia tem com outras associações. Fica na Casa do Porteiro da Biblioteca Municipal de Belém, em Lisboa, num sítio ótimo. A Junta de Freguesia de Santa Maria de Belém deu-nos o seu apoio com um donativo para fazermos as obras da sede. Isto já está. Agora, tivemos o apoio da Sonae MC para o primeiro projeto, que é o tal prémio de que já vos falei. Será sempre assim até podermos concorrer a concursos nacionais e internacionais. A vida normal de uma associação sem fins lucrativos...


Cada dia é um dia. Ainda não temos pessoas a trabalhar no terreno. Vai ser assim até as coisas estarem autossustentáveis e a associação poder caminhar sozinha, ainda que com passos curtos. Eu acredito mais nos passos curtos e certeiros do que nos passos enormes e inconsequentes.

Arriscar a criação de uma associação deste género em tempos de crise exige uma boa dose de coragem. Está ciente disso?

Acho é preciso ter um espírito corajoso. Acho mesmo. Mas o grande segredo é não sonhar demasiado alto. A utopia será sempre aquilo que nos move mas, se eu sonhar demasiado alto, vou ficar muito mais desiludida com os entraves que permanentemente surgem. O nós termos hoje [dia da conferência de apresentação pública da associação] promovido um dia de reflexão... Há muita gente quer foi passando por aqui e que saiu daqui com mais coisas na cabeça. Isso, para mim, já é um contributo de uma associação sem fins lucrativos para a reflexão dessas temáticas.

Passinho a passinho... Agora não queremos ser a instituição. O objetivo é servir as populações mais vulneráveis e em risco com uma ajuda de intervenção social. É servir o grupo mais vulnerável e que está a sofrer mais o impacto da crise. Isso está provado. O grupo que está a sofrer com mais intensidade o impacto da crise é o grupo feminino. São as mulheres e as crianças, por acréscimo. Eles são o grupo em situação de maior pobreza e é esse grupo que nós queremos ajudar, em primeira instância.

Quando é que essa vontade de fazer mais pelos outros se começou a manifestar de uma forma mais persistente e constante?

Eu não sei desde quando. Com os «Príncipes do nada» e com o Fundo das Nações Unidas para a População, começou a nascer a ideia de que jamais poderia passar por aquilo que passo – e muito não é visível nos documentários – e não fazer nada. Eu é que faço o corte e costura, a edição dos trabalhos. E, às vezes, estou com o editor e com o realizador, o Ricardo Freitas, e ficamos para ali os dois a pensar «Isto não pode ser exibido, pois não? Isto já é demais... Já é uma exposição um bocadinho acima daquilo que nós queremos».


As pessoas já não têm dignidade no seu dia a dia e não lha queremos tirar ainda mais. Ainda mais expostas assim. Aquela fronteira fica muito ténue. Aquilo que nos vivemos e que muitas vezes nem sequer é mostrado não nos pode passar ao lado. Eu sou uma privilegiada mas acreditem mesmo que tudo aquilo entra na pele e já não sai mais, a não ser que sejamos pessoas muito insensíveis.

A mim, como tive uma educação baseada nos direitos humanos, aquilo afeta-me. Todas aquelas desigualdades sociais e não só em termos de género.... O mundo não está lá longe e nós aqui. O mundo é tudo e, em situações de crise como a que estamos a viver, acentuou-se muito mais esta questão. Nós ficamos mais umbiguistas. Ficamos a achar que o mundo é muito local. Temos de ter uma perspetiva muito mais global. O sonho e a vontade de intervir foram crescendo e, depois, com as pessoas certas que estão ao meu lado, as coisas evoluíram.

As 24 horas do dia deixam-lhe tempo de sobra para mais este desafio?

Sobrar tempo não sobra. Ontem [véspera da apresentação pública da associação], fui ao programa de televisão «5 para a meia noite», eram três da manhã quando me deitei e, hoje, às oito já estava aqui. Na noite anterior, a direção da associação esteve a reunir para preparar a conferência de lançamento. Na outra noite, fiz os trabalhos de casa com as crianças todas lá de casa. Como sabem, tenho quatro. Isto implica uma gestão mas é uma gestão fácil porque sou uma privilegiada e porque tenho um companheiro ao lado que sabe que o papel dele é fazer exatamente o mesmo que eu.


Veja na página seguinte: O empenho da família

A família está toda empenhada neste projeto?

Está. Nem podia ser de outra maneira...

Aliás, o nome da associação foi escolhido pela sua filha...

Foi a Maria Beatriz que sugeriu. E ficou...

Porque é que ela sugeriu este nome?

Ela tem agora seis anos e, aos cinco, quando começou a desenhar, todos os bonecos que desenhava tinham coroas. Os meninos e as meninas. Eu expliquei-lhe que nem todos os meninos no mundo têm coroas, que só os príncipes e as princesas é que têm coroas.

E ela respondeu-me que os meninos da mamã têm todos coroas e os meninos da mamã são os dos «Príncipes do nada». Há determinados programas que eu a deixo ver e outros que não. Quando vou para algum país em desenvolvimento, explico-lhe o que vou fazer e ela consegue ver nos meninos que nada têm uma coroa invisível. Para mim, foi muito inspirador e, portanto, achei que este nome fazia sentido. Propus esta designação às meninas e aos voluntários que desafiei para este projeto e foi aceite.

O facto desta associação ser presidida por uma figura pública ajuda muito?

Espero que sim. Se as pessoas confiarem na minha seriedade, na minha transparência, na minha convicção e no meu empenho, espero que ajude. Há quem vá criticar, é certo, mas é sempre assim, mesmo em projetos que não envolvem figuras públicas. As pessoas são muito de ver para crer e eu confio, sobretudo, na minha capacidade de angariar vontades e de juntar sinergias.

Texto: Luis Batista Gonçalves
Foto: Facebook Príncipes do nada