“Perturbação da personalidade” é um diagnóstico psiquiátrico (ou conjunto de diagnósticos) relativamente frequente e é cada vez mais comum que aqueles que procuram um psiquiatra ou um psicólogo perguntem se têm, eles próprios, uma perturbação da personalidade. De facto, a crescente facilidade com que qualquer pessoa procura na internet o significado de um conjunto de sintomas ou comportamentos tem levado a que os “auto-diagnósticos” precipitados tenham passado a fazer parte da nossa prática clinica.

No entanto, comentários sobre a personalidade, própria e dos outros, sempre foram frequentes, mesmo antes da internet, e infiltram há muito tempo a cultura popular. Expressões como “ele tem uma personalidade muito difícil”, “tenho uma personalidade muito vincada” ou “eles têm personalidades muito parecidas, por isso entram em conflito” são ouvidas por todos e refletem aquilo que todos já sabem: todos temos personalidade e, em alguns casos, ela não funciona bem. Coloca-se então a questão: o que é distingue uma personalidade “difícil” de uma perturbação da personalidade? Para responder, é importante, para começar, saber o que é a personalidade.

A personalidade define-se como um conjunto de traços de funcionamento mental que definem a forma como cada indivíduo se relaciona com o mundo, com os outros e consigo próprio. Por outras palavras, constitui-se de padrões cognitivos, emocionais, motivacionais e comportamentais que são utilizados pelo individuo perante circunstâncias particulares com que se depara. A personalidade resulta da conjugação de componentes biológicos, genéticos, que nascem com o indivíduo e que são herdados dos progenitores, e componentes ambientais, ou seja, da forma como, durante a infância, o meio envolvente e as relações com os outros moldam a forma de reagir às situações.

A combinação destes fatores dá origem aos traços de funcionamento habitual de cada um, e que apresentam relativa estabilidade a partir do início da idade adulta, o que permite, por exemplo, saber prever o comportamento de alguém que conhecemos bem perante determinada situação – “eu já sei como ele vai reagir às situações, conheço-o muito bem”, o que é o mesmo que dizer que se conhecem os traços da personalidade.

Se a personalidade se define como um conjunto de traços de funcionamento, também é fácil perceber que alguns desses traços podem funcionar bem e outros mal, ou por outras palavras, podem ser adaptativos ou não. Esta noção de que os diferentes traços num único indivíduo podem ser mais ou menos adaptativos também está presente na nossa linguagem comum, quando dizemos, por exemplo, “ela acha sempre que estão a querer prejudica-la, mas de resto é impecável!” ou “ele é muito calmo, mas toda a gente sabe que ele não pode sentir que está a ser rejeitado... porque nesse momento entra em crise”. Na verdade, todos nós temos traços da personalidade mais disfuncionais, mas isso não faz com que todos tenhamos uma perturbação da personalidade. A perturbação da personalidade existe quando a disfunção cumulativa deste conjunto de traços atinge uma intensidade ou uma gravidade que leve a sofrimento do próprio ou dos outros ou comprometimento do desempenho do indivíduo em diversas áreas da sua vida.

Assim, define-se uma perturbação da personalidade como um padrão persistente e mal-adaptativo de experiências internas e comportamentos, que se desvia acentuadamente do esperado para o contexto cultural do indivíduo, gerando disfunção em diversas áreas: (1) cognitiva, ou seja, as formas de perceção e interpretação de si próprio, dos outros e dos acontecimentos estão alteradas; (2) afetiva, o que significa que respostas emocionais não são apropriadas no que diz respeito à variedade, intensidade, labilidade e adequação das mesmas face às situações; (3) das relações interpessoais e (4) do controlo dos impulsos. Este padrão persistente de funcionamento alterado manifesta-se progressivamente até ao início da idade adulta, mantendo-se depois dessa altura, condicionando défices no funcionamento social, ocupacional ou noutras áreas importantes do funcionamento.

Escusado será dizer que, em muitos casos, estes traços disfuncionais da personalidade causam sofrimento importante ao próprio indivíduo e aqueles que lhe são próximos. É fundamental que, quando procuram ajuda nesse contexto, sejam corretamente diagnosticados, não só sobre se têm uma perturbação da personalidade, mas também, em caso positivo, sobre que tipo de perturbação apresentam. A clara definição do diagnóstico e dos traços de personalidade disfuncionais permitirá que a estratégia terapêutica (que poderá incluir elementos farmacológicos e psicoterapêuticos) seja delineada de forma perfeitamente adaptada ao indivíduo, com o objetivo de aumentar a funcionalidade nos vários campos da sua vida, nomeadamente nas relações familiares, amorosas e sociais, assim como no desempenho profissional, incluindo o seu componente relacional.

Gustavo Jesus/Psiquiatra
Coordenador da Consulta do Adulto do PIN