Cerca de 500 milhões de neurónios, dois biliões de bactérias e dez milhões de genes. Os números que traduzem o que se passa nos nossos intestinos eleva-os à categoria de segundo sistema mais complexo no nosso corpo, depois do cérebro.  «Na biologia, sabemos que, à exceção do cérebro, não há outro órgão com tantos neurónios como os intestinos», revela a gastroenterologista Giulia Enders, autora do livro «A vida secreta dos intestinos». «Ele foi, provavelmente, o primeiro cérebro a desenvolver-se e mostrou-se essencial à nossa evolução», acrescenta.

Em 2010 (com revisão feita em 2014), a revista Nature apresentava os primeiros dados de um projeto desenvolvido por vários institutos internacionais, o Projeto do Microbioma Humano, The Human Microbiome Project no original. A comunidade científica ficava, então, na posse de informação que ainda não digeriu totalmente. Sabe-se hoje que há 10 milhões de genes nas bactérias que habitam o intestino humano e que cada indivíduo tem 600 mil genes diferentes.

Estes são, por sua vez, responsáveis por 20 mil funções específicas, das quais cinco mil ainda desconhecemos. Na flora bacteriana deste órgão, pode estar, segundo muitos especialistas, a solução terapêutica para muitos casos de doenças de pele, depressão, diabetes ou até obesidade. Nos próximos anos, o estudo científico e laboratorial desses elementos promete intensificar-se.

Os diferentes tipos de intestinos

São estas bactérias que estão na origem da divisão dos intestinos em três grandes grupos (enterótipos), definidos pela família bacteriana que constitui a maior parte da sua população, mas sem relação com o género, idade ou origem do indivíduo. Por enquanto, esta identificação está circunscrita a estudos mas poderemos vir a ter acesso à identificação do nosso enterótipo, da mesma forma que sabemos hoje qual o nosso tipo de sangue. Ao contrário deste, porém, não sabemos ainda se o nosso enterótipo permanece o mesmo a vida inteira ou se pode sofrer alterações.

A ligação à depressão

O microbioma ou flora intestinal tem, assim, um papel de tal forma preponderante na nossa saúde física e psicológica que já é considerado um novo órgão. Investigações indicam que pessoas com inflamação crónica dos intestinos têm uma probabilidade maior de sofrer de depressão ou ansiedade, mais do que outras doenças crónicas. A experiência realizada com ratos pelo irlandês John Cryan, a que Giulia Enders faz referência no seu livro, demonstra essa correlação.

O neurocientista da Universidade College Cork observou dois grupos de ratos. Ao primeiro grupo não alterou a alimentação, ao outro deu a comer uma bactéria conhecida por cuidar do intestino, a Lactobacillus rhamnosus. Ao fim de uns dias, o segundo grupo registava menos sintomas de depressão e ansiedade do que o primeiro, menos hormonas de stresse no sangue e melhores resultados em testes de memória e de aprendizagem. Mas a experiência foi mais longe.

Uma vez cortado o nervo vago, que faz a ligação entre o sistema digestivo e o cérebro, deixavam de se encontrar diferenças entre os grupos. Esta experiência foi repetida em 2013, mas em humanos e o resultado foi semelhante. «Após quatro semanas a ingerir uma determinada mistura de bactérias, algumas áreas cerebrais apresentaram alterações positivas significativas, sobretudo as zonas responsáveis pelo processamento da dor e das emoções», refere.

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O fator stresse

O stresse é a causa de desequilíbrios na flora intestinal, promovendo a multiplicação de bactérias nocivas. «Qualquer tipo de stresse ativa as células nervosas que nos impedem de fazer a digestão, o que não só faz com que retiremos menos energia dos alimentos como também com que precisemos de mais tempo para isso, sobrecarregando o nosso intestino», diz Giulia Enders.

Daí que as refeições devam ser feitas em ambientes calmos, sem distrações. O stresse prolongado no tempo pode levar à diminuição da circulação sanguínea e da camada mucosa de proteção, o que fragiliza as paredes intestinais. Daqui advêm problemas como gastrites, úlceras ou o desenvolvimento de cancro.

Impacto global no organismo

Também doenças de pele, dos pulmões, das articulações e de outros tecidos, causadas por processos inflamatórios, podem estar relacionadas com desequilíbrios bacterianos que provocam inflamações. Assim, mais do que a presença de determinadas bactérias, o importante é a sua diversidade. Por isso, quanto mais rica é a flora intestinal, melhor é o estado nutricional do indivíduo e, logo, o seu estado geral de saúde.

Miguel Ángel Almodovar, jornalista e investigador castelhano especializado em nutrição e gastronomia, publicou recentemente o livro «O segundo cérebro». Também segundo o autor, a alteração do equilíbrio do microbioma (ou flora intestinal) «está em estreitíssima relação com o aparecimento de problemas como obesidade, diabetes, asma, alergias, doença celíaca, eczemas atópicos e todo o tipo de doenças autoimunes, vários tipos de cancro, além de uma longa lista de alterações psicológicas e de doenças mentais».

No futuro

Assim que for decifrado o genoma das bactérias intestinais e determinadas as suas funções, poderemos definir valores padrão, tal como já existem para os níveis de glicose, hemoglobina, leucócitos ou colesterol.  Será, então, possível relacionar os genes das bactérias intestinais com determinadas patologias, definir tratamentos e desenhar planos de prevenção.

Os aliados dos intestinos

O desequilíbrio da flora intestinal pode ser corrigido com a ajuda da alimentação:

- Os probióticos são organismos vivos que se usam na alimentação, medicamentos e suplementos dietéticos. As bactérias mais comuns são as que pertencem aos géneros lactobacilos e bifidobactérias.  Alguns alimentos contêm-nos de forma natural como é o caso do iogurte, do Kefir, do chucrute, do chocolate preto, das microalgas, da sopa de miso e dos pepinos de conserva.

- Os prebióticos são fibras que apenas podem ser consumidas pelas bactérias boas, o que faz com que se desenvolvam menos toxinas no intestino. Podemos encontrá-los na batata, na chicória, no alho-porro, nos espargos, na cebola, no alho e nas alcachofras.

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Os tipos de bactérias mais presentes no intestino

A família bacteriana que predomina nos nossos intestinos dita o nosso perfil intestinal. É que cada tipo de bactéria divide alimentos, produz substâncias e elimina toxinas de forma específica. A possibilidade de virmos a definir o nosso perfil intestinal no futuro pode vir a permitir adaptar os tratamentos e dietas à medida de cada um:

- Bacteroides

A predominância desta bactéria, que metaboliza sobretudo hidratos de carbono, está associada à tendência para engordar. Estudos mostraram que a flora intestinal de pessoas obesas tinha pouca variedade bacteriana e predominava este tipo de bactéria. Não se sabe se faz engordar ou é resultado de gordura em excesso.

- Prevotella

Esta bactéria tem preferência pelos cereais e é mais frequente nos vegetarianos. A vitamina predominante é a B1, determinante para o bom funcionamento do cérebro. A sua ausência poderá provocar tremuras nos músculos e falhas de memória.

- Ruminococcus

Embora este perfil ainda não seja consensual, sabe-se que estas bactérias absorvem açúcar com bastante rapidez e trabalham com outras bactérias que decompõem a mucosidade e produzem hemo – a substância necessária para produzir sangue.

Texto: Rita Duarte com Giulia Enders (médica gastrenterologista)