Exerce medicina há anos, sempre com uma obsessão: ser melhor. Não se trata de ambição, mas de uma vontade constante de questionar o que faz, como faz e porque o faz. Nos livros e crónicas que escreve, não tem medo de admitir as falhas, receios e experiências que vive no dia-a-dia da sua profissão.

Cirurgião, reconhecido pelo seu trabalho na remoção de células endócrinas cancerígenas, é actualmente Professor catedrático de Cirurgia na Universidade de Harvard. Colabora com a revista The New Yorker e com o New England Journal of Medicine e é o autor de dois bestsellers: «A mão que nos opera» e «Ser bom não chega».

Desta vez, a sua busca pela perfeição levou-o a sair do ambiente asséptico do hospital e a conhecer engenheiros, pilotos e até uma chef de um famoso restaurante. Tudo para tentar aprender novas formas de lidar com os desafios. A resposta, afinal, estava ao alcance de todos. E é o tema para o seu mais recente livro, intitulado «O efeito checklist».

Em entrevista à saber viver, Atul Gawande, cirurgião e director do programa da Organização Mundial de Saúde intitulado Safe Surgery Saves Lives, explica como algo tão simples como uma lista de tarefas pode fazer toda a diferença.

No seu livro refere um ensaio, que leu em estudante, sobre a falibilidade humana. De que forma o influenciou como médico?

Foi o texto que mais me marcou até agora. É escrito por dois filósofos e questiona por que razão falhamos. Segundo os autores, há duas explicações para o fracasso: ignorância e inaptidão. A primeira está relacionada com a falta de conhecimento, a segunda com a incapacidade que o indivíduo tem de aplicá-lo correctamente. O que é interessante hoje em dia é que conhecemos muitas coisas, mas continuamos sem saber como superar essa inaptidão.

Que situações põem a vida do paciente em risco?

Depende. Em cirurgia, os três riscos principais são a infecção, o sangramento e problemas na anestesia. No bloco operatório, por exemplo, é preciso certificarmo-nos de que a equipa deu antibiótico ao paciente antes de fazer a incisão, ver se este está anestesiado e se há sangue suficiente para transfusão caso seja necessário.

Podemos ajudar o médico a minimizar os riscos de erro?

Sim. Os pacientes podem ajudar a melhorar os cuidados prestados aos seus familiares. Por exemplo, uma situação comum mas evitável é a pneumonia. Estar alguém junto à cama que se certifica que todas as pessoas que tocam no doente lavaram as mãos antes ou que a cabeceira da cama está elevada a 30 graus (para que nada bloqueie as vias aéreas) é uma grande ajuda. Apesar de serem cuidados que prestamos em pelo menos 80 por cento dos casos, se os familiares não hesitarem em avisar-nos quando nos esquecemos ajudam-nos.

Actualmente dirige um programa na Organização Mundial de Saúde (OMS) para reduzir a taxa de mortalidade em cirurgia. Em que consiste este projecto?

Em finais de 2006 fui convidado pela OMS para dirigir o programa Safe Surgery Saves Lives, que visa reduzir a taxa de mortalidade em cirurgia no mundo. Anualmente realizam-se mais de 200 milhões de intervenções, o que é muito positivo. Mas há 7 milhões de pessoas que perdem a vida ou têm complicações. Estes dados referem-se apenas aos países desenvolvidos, estima-se que sejam mais elevados noutros países.Quando comecei o programa, nunca pensei que a resposta para este problema estivesse numa simples lista.

O que mais o surpreendeu nesta experiência?

Perceber que, tanto nos hospitais em alguns dos locais mais pobres do mundo (em zonas rurais na Índia) como nos hospitais mais ricos do planeta (como Toronto General, no Canadá), todos têm dificuldade em fazer com que o sistema funcione.

O que explica essa dificuldade universal?

Uma das razões pelas quais o risco de falhar é grande reside no facto de, apesar de cada indivíduo ser muito bom no que faz, ainda assim cometer erros que podem ser determinantes. Até à data, a Medicina já descobriu mais de 6000 medicamentos, 4000 procedimentos médicos e cirúrgicos e estamos a tentar lidar com toda esta complexidade como se ainda se tratasse de dar uma simples injecção de penicilina.

Como surgiu a ideia da checklist?

Comecei por analisar áreas diferentes para compreender como é que as pessoas lidavam com situações extremamente complexas. Quando vi como este processo decorre na aviação, na construção de um arranha-céus ou numa cozinha profissional percebi que eles tinham tudo o que nós encontramos no exercício da Medicina – especialistas qualificados e experientes e tecnologia – mas havia algo que nós ainda não tínhamos: a lista. Em Medicina, Direito ou no Ensino ainda nos baseamos na experiência, mesmo sabendo que o ser humano acabará por falhar.

No seu livro refere a tragédia do furacão Katrina como um exemplo. Porquê?

Esse caso ilustra o que é uma boa e uma má checklist. Quando aconteceu, a protecção civil nacional seguiu as normas existentes para lidar com este tipo de situação. O furacão foi maior do que o previsto e, como resultado, o sistema de informação falhou, as equipas não conseguiram dar resposta, mas, ainda assim, seguiram o plano à risca. Por outro lado, a Wallmart, uma rede de lojas, criou uma checklist simples com um objectivo (salvar o máximo de pessoas possível) e uma regra: comunicar as medidas tomadas. Desta forma conseguiram reagir mais rapidamente e até forneceram água 24 horas antes das equipas nacionais. Não foi porque seguiram passo a passo um plano pré-estabelecido mas porque criaram uma lista baseada num objectivo e na comunicação na equipa.

O que caracteriza a lista perfeita?

Não deve ser uma lista de tudo o que precisa de saber, mas daquilo que é mais provável esquecer-se ou errar. Imagine que está num avião e fica em apuros. Não vai ensinar o piloto a pilotar nesse momento, mas sabe que há cinco ou seis pontos-chave que não podem ser esquecidos. Esses serão a checklist. No programa Safe Surgery Saves Lives fizemos 50 versões diferentes até que finalmente conseguimos criar uma lista, curta e simples, que ajudou os médicos a fazerem melhor o seu trabalho.

E o que determina o sucesso da lista?

Há um conjunto de valores presente quando a lista é bem concebida e aplicada. Um deles é a humildade para perceber que, como ser humano, independentemente dos conhecimentos que tenha, irei cometer falhas e que o meu cérebro nem sempre conseguirá assimilar tudo. O segundo é a autodisciplina para seguir uma simples lista. O terceiro é o trabalho de equipa.

Como podemos melhorar o trabalho de equipa?

Usando o instrumento mais poderoso: dar a oportunidade a cada elemento da equipa para dizer o seu nome. Pode parecer pouco importante mas o facto de cada pessoa se apresentar permite integrá-la na equipa e ter voz no que se irá passar. Este gesto foi controverso na Índia e em África, onde as enfermeiras não eram autorizadas a falar.

Dois anos após implementar a primeira checklist acha que valeu a pena?

Testámo-la em vários hospitais por todo o mundo e verificámos que, em média, reduziu a taxa de complicações em cirurgia em cerca de 36 por cento e a taxa de mortalidade em cerca de 50 por cento.

E já pôs em prática essa lista no seu bloco operatório?

Comecei a usar a checklist porque estava a implementá-la noutro hospital. Se acreditava que iria fazer diferença no meu bloco operatório. Não. «Sei o que estou a fazer», pensei. Mas logo no primeiro dia percebemos que funcionava. Já a uso há dois anos e não passa uma semana sem que detectemos algo que poderíamos ter feito melhor.

Ao expor as falhas da Medicina não receia que as pessoas deixem de acreditar nos médicos?

A sociedade está a começar a perceber que não somos perfeitos, que somos seres humanos, inevitavelmente imperfeitos, mas que, ao mesmo tempo, somos capazes de fazer coisas extraordinárias. As pessoas querem saber se nós estamos em busca da perfeição. O à vontade que temos para falar sobre o fracasso faz parte deste processo de criar confiança nas pessoas. As histórias que conto são verdadeiras e também comuns e isso é que as torna assustadoras.Mas, ao mesmo tempo que as relato, demonstro de que forma podemos fazer algo muito melhor.

Qual é o seu próximo desafio?

Tentar ser melhor no que faço, implementar a checklist e ver outros médicos usá-la. Em Portugal já foi adoptada este Verão. Devemos vê-la como uma oportunidade para melhorar o sistema de saúde e mudar as mentalidades. Este é o maior desafio.

Como criar uma checklist para ser mais eficiente

1. Aceite que qualquer tarefa, por mais complexa que seja, pode ter falhas.

2. Identifique os eventuais erros que tem cometido.

3. Defina um momento no qual poderá pegar na lista e, em 60 segundos, verificar se cumpriu todos os pontos.

4. Crie uma checklist de forma concisa e simples, centrada em seis pontos-chave.

5. Teste-a. Só assim saberá se resulta. Faça as adaptações necessárias até funcionar.

Texto: Manuela Vasconcelos com Atul Gawande (cirurgião e professor catedrático de Cirurgia na Universidade de Harvard)

Foto: Laura Hanifin