O médico atendeu a estudante, que se queixava de dor de dentes, e receitou-lhe um antibiótico. Ela piorou e passada uma semana foi internada de urgência com febres elevadas, insuficiência respiratória e o corpo todo pintado de amarelo fluorescente.

Ao lermos o caso da estudante agravado pela medicação, imaginamos imediatamente o Dr. House e a sua equipa a tentar decifrar o enigma. E não é para menos.

Este é um dos casos relatados por Lisa Sanders, professora catedrática da Faculdade de Medicina da Universidade de Yale, na coluna que assina há seis anos no New York Times, e que serviu de inspiração para muitos dos mistérios (reais) que a personagem interpretada por Hugh Laurie semanalmente soluciona nos ecrãs de televisão. À conversa com a médica e consultora técnica da série, ficámos a saber como os detetives da classe médica, qual Sherlock Holmes ou um investigador dos tempos modernos, resolvem os casos mais complicados.

Na vida real, existem médicos como Gregory House, da série televisiva, capazes de diagnosticar quase tudo?

Cada comunidade de médicos tem a sua quota de doutores House, a quem chamamos mestres clínicos. O mais engraçado é que quase todos os médicos nessa comunidade concordam com quem está nessa lista.

O que torna estes médicos especiais?

Certamente o conhecimento. É evidente que hoje em dia ninguém sabe tudo sobre medicina. O mundo do conhecimento médico é demasiado vasto para isso. Mas existem médicos que parecem saber e diagnosticar mais do que todos os outros. Isso advém do facto de lerem mais e de serem mais experientes.

Mas o conhecimento só por si não é suficiente. Alguns médicos sabem muito, mas não conseguem aplicar os seus conhecimentos ao doente. Geralmente estes profissionais dedicam-se à pesquisa. Depois existem outros que podem não saber tanto mas têm uma grande capacidade para juntar as peças do puzzle.

Qual é a especialidade destes médicos?

São médicos de medicina interna, como eu. Para o internista, inteligência, conhecimento e capacidade para fazer um diagnóstico são as suas ferramentas de trabalho.

Tal como na série estes médicos também trabalham em equipa?

A medicina é sempre uma atividade de equipa, independentemente da especialidade. Os internistas trabalham com especialistas porque, por vezes são necessários procedimentos específicos.

Por seu lado, os especialistas trabalham com internistas porque reconhecem que o paciente é muito mais do que o sistema orgânico ou a doença com a qual eles estão mais familiarizados.

Qual é a importância, para o diagnóstico, da história narrada pelo paciente?

É a ferramenta de diagnóstico mais importante que nós temos. A pesquisa mostrou que mais de 80 por cento dos diagnósticos são feitos com base na história do paciente. Não existe nenhum teste que tenha esse grau de eficácia.

No seu livro refere que o exame físico está em extinção. Porquê?

Antigamente o exame físico era a única forma de obter informação sobre o organismo. Hoje existe muita tecnologia que pode mostrar o que se passa no interior do corpo. Mas isso não significa que o exame físico se tenha tornado inútil, se bem que suspeito que muitos médicos (talvez até a maioria) pense assim. O exame físico é a forma mais rápida do médico recolher informação.

Pode dar um exemplo?

No meu livro conto a história de um paciente que chegou ao hospital para uma cirurgia ao ouvido e desenvolve uma dor abdominal. Os cirurgiões plásticos que se estão a preparar para o levar para a sala de operações não sabem o que está a causar a dor e o paciente está num tal sofrimento que não pode ajudar muito.

Mas há um médico, Steve McGee, que ao colocar as mãos no abdómen do paciente, imediatamente percebe que este tem um enorme aneurisma na aorta, a veia que transporta o sangue do coração para o resto do corpo e que a dor deve-se a uma fenda nesse aneurisma. Ele percebe que o paciente pode morrer a não ser que a fenda seja reparada imediatamente.

O que é então mais importante para chegar ao diagnóstico? A história do paciente, o exame físico ou os testes clínicos?

Segundo estudos, em 80 por cento dos casos, o diagnóstico surge após o médico ouvir a história do paciente.

O exame físico fornece informação chave que conduz ao diagnóstico em dez por cento dos casos.

Os testes dão a resposta nos restantes dez por cento dos casos. Portanto, o exame físico é tão importante quanto os mais avançados testes para encontrar o diagnóstico certo.

Na vida real, o tempo que os médicos passam com cada paciente é inferior  àquele que se vê na série. Como conseguem avaliar o problema tão rapidamente?

É preciso despender com cada paciente o tempo que cada um precisa. Esta é uma das razões pela qual os médicos saem tarde das consultas. Mas, geralmente, o diagnóstico é rápido. Alguém chega ao consultório com sintomas de gripe, a meio da época das gripes, e não demora muito para perceber que aquele paciente provavelmente tem essa patologia. Os pacientes que requerem mais tempo são os que têm doenças menos evidentes.

No seu livro, refere softwares que podem ajudar os médicos no processo de diagnóstico. Qual a importância dessas ferramentas?

Essa ferramentas ajudam-nos a pensar em doenças que podem encaixar nos sintomas do paciente e ainda não nos tinham ocorrido. É mais difícil diagnosticar uma doença da qual nem nos lembramos. No entanto, a maioria dos médicos não as utilizam, por ser dispendioso e complicado. Muitas vezes é preciso pagar para ter o software disponível e perder tempo a introduzir os dados do paciente.

Uma vez que é impossível saber tudo sobre medicina é comum os médicos pesquisarem na Internet enquanto tentam resolver um caso?

Eu uso o Google a toda hora. É mais fácil de utilizar do que a vasta biblioteca médica online a que tenho acesso, porque tem um sistema de pesquisa muito mais flexível. Permite combinar vários sintomas ao contrário da bibliografia médica que está organizada não por sintoma, mas por doença. Ora, se soubesse o diagnóstico, não estaria a pesquisar.

Muitos pacientes também recorrem à Internet para se autodiagnosticarem. O que acha desta atitude?

Quando temos um sintoma, é normal querermos procurar informação acerca do que se está a passar connosco.

Antes da Internet, voltávamo-nos para os amigos, para a família ou para os colegas de trabalho. Todas elas podem ser boas fontes de informação.

Pode contar-nos um caso concreto?

Uma vez recebemos uma paciente com febre, dores no corpo e sem outro sintoma. Não sabíamos o que fazer embora tivéssemos iniciado um tratamento à base de antibióticos. Entretanto, ela telefonou à família, que tinha acabado de visitar na República Dominicana, e foi quando soube que, logo após ela partir, houve um surto de dengue no local. Era o que ela tinha mas, sem esta informação, não teríamos pesquisado esta doença.

O que é que os pacientes devem ter em conta ao pesquisar online?

Se colocar apenas um sintoma isolado no Google, por exemplo, encontrará demasiada informação. Pesquisa dor de cabeça e obtém 25 milhões de entradas. Não é útil. Mas se introduzir múltiplos sintomas ou se souber algo específico e particular sobre a sua doença poderá ter mais sorte. Se pesquisar «dor de cabeça + rigidez no pescoço» vai obter um lista muito melhor. Quanto mais específica for a sua pesquisa, maior possibilidade terá de obter uma resposta útil.

Texto: Vanda Oliveira com Lisa Sanders (professora catedrática da Faculdade de Medicina da Universidade de Yale)