A crise devolveu importância às refeições
feitas em casa, para ingerir em família e até para levar na marmita para o trabalho, mas as mulheres não parecem
dispostas a abdicar dos seus pequenos
prazeres fashion.

Voltar à cozinha com estilo
significa andar de olho na internet, comprar
qualidade e estar a par das novidades que continuam a inundar as prateleiras de mercearias e supermercados.

Trocar o prazer de comprar uns sapatos novos
ou uma peça de roupa pela tentação de um novo patê ou
um molho pesto especial pode parecer, à primeira vista, uma
ideia absurda.
Mais ainda, em tempo de crise, que obriga ao recurso a formas alternativas para ultrapassar as medidas de austeridade a que os portugueses têm vindo a ser sujeitos nos últimos anos.

Mas a verdade é
que a tendência da culinária gourmet não desapareceu com a
perda de poder económico. Adaptou-se. E mesmo em
Portugal, onde o fenómeno teve sempre uma representatividade
inferior quando comparado com países como o Reino
Unido ou os Estados Unidos da América, é possível encontrar mulheres
de olhos nas prateleiras, a ver as novidades numa loja de
produtos gourmet. E igualmente provável vê-las sair com
uma tentação na carteira.

A teoria do batom

A maioria das mulheres viram-se obrigadas a reduzir os gastos
no que diz respeito a moda, beleza e outro tipo de extras.
Cortaram nas visitas ao cabeleireiro e mais ainda nas idas ao
restaurante. Comem hoje mais em casa, não só no dia-a-dia
mas também em ocasiões especiais. Mas há uma nova geração de mulheres, entre os 30 e os 50
anos, que regressou à cozinha por prazer e com gosto, despida
de preconceitos, que não parece estar totalmente disposta a
abdicar dos prazeres culinários mais sofisticados.


Para a chefe
de cozinha inglesa e autora de livros de culinária Rachel Khoo, estas mulheres gastam mais em mercearias e compras
gourmet «porque é um pequeno luxo que o seu nível de vida
ainda permite suportar», sublinha. A opinião, que pode ler-se num
artigo dedicado ao tema publicado na revista inglesa Red, é
partilhada pela jovem portuguesa Susana Gomes.

«É um bocadinho a teoria do batom», comenta a jovem por
trás do blogue Nosoup-foryou, que é também a autora do livro
de culinária Velocidade Colher, com receitas tradicionais na
versão Bimby. «Face à crise, as mulheres procuram um escape
nos pequenos luxos, menos representativos na carteira e, no
caso da comida, com a vantagem adicional de poderem ser
partilhados em família ou com amigos», refere ainda.

A teoria do batom foi lançada por
Leonard Lauder em 2002 e, desde então,
confirmada por analistas e economistas que se
interessaram pelo assunto. Leonard Lauder disse que as vendas
de batom poderiam indicar a situação económica de um país. Quanto mais batons fossem vendidos, pior seria o estado da
economia. Os números dão-lhe razão. Noel Lim, consultor da
Kline & Co, analisou o histórico de vendas dos últimos 50 anos
do mercado de cosméticos, isolando os números relativos aos
batons e chegou à mesma conclusão. «Sempre que o desemprego
aumenta e a confiança do consumidor diminui, as vendas
de batom disparam», assegura.

A extravagância acessível

A aplicação da mesma teoria à alimentação esbarra
na falta de dados e estudos que possam comprová-la.
mas alguns indicadores permitem essa extrapolação,
pelo menos no que diz respeito ao mercado inglês.
de acordo com o artigo publicado na revista inglesa,
a exclusiva marca de produtos orgânicos duchy originals,
criada pelo príncipe carlos em 1990, registou
lucros de 2,5 milhões de libras (3,1 milhões de euros)
em 2011. E mesmo sem base científica que sustente a
sua opinião, só com base na sua experiência e observação,
Rachel Khoo é perentória.

Gastar dinheiro em
vestidos caros de grandes designers deixou de estar na
moda, mas investir em comida
de qualidade e ingredientes que fazem a diferença
é aquilo que está na crista da onda. «As pessoas estão a cortar nas despesas por causa
do estado da economia, mas ainda podem gastar
umas libras extra no supermercado sem se sentirem
terrivelmente mal por isso», diz a famosa chef inglesa.
«é uma extravagância acessível e isso explica em
parte o sucesso de algumas marcas de comida orgânica
ou comércio justo. Além disso, é também uma
questão de estatuto social. vai-se a um jantar festivo
e toda a gente fala de comida», explica.


A própria elite intelectual refere essa mudança. Além do falecido autor norte-americano Gore Vidal,
também nomes como Mario Vargas Llosa, escritor
peruano laureado com o Prémio Nobel da Literatura,
comentam a falta de interesse crescente, mesmo entre
os círculos de pessoas bem informadas nas áreas
da cultura outrora consideradas mais nobres. «As passerelles
e a cozinha estão a superar a arte e a filosofia»,
comentou Mario Vargas Llosa, numa entrevista de abril de
2012, a propósito do lançamento do ensaio «A Civilização
do Espectáculo». A obra nasceu ela mesma dessa
certeza do escritor, que aos 76 anos considera que a
cultura foi «tomada de assalto» por outras áreas.


Veja na página seguinte: As pessoas que se interessam por comida

O primado da qualidade

Em Portugal, o chef José Avillez depara-se com uma
realidade um pouco diferente. «Parece-me que é
uma tendência que ainda não se desenvolveu tanto
como no Reino Unido ou nos Estados Unidos da América, onde
algumas elites exibem os seus conhecimentos e as
suas compras de produtos alimentares como símbolo
de status», disse à Saber Viver.

Mas, apesar disso, há
alguns sinais comuns. «Há cada vez mais pessoas que
se interessam sobre o que comem, sobretudo entre os
20 e os 40 anos. Têm mais informação e procuram optar
pela qualidade», reconhece o chef.

«Parece-me que a procura da qualidade é, sem dúvida, uma tendência.
E a qualidade pode estar tanto na origem do produto,
na frescura, na forma como é produzido, como é
preservado ou até como é transportado», sublinha. É sobretudo essa a preocupação de Susana
Gomes, que no seu caso confessa privilegiar a qualidade
da matéria-prima, tendo em conta, por essa
mesma ordem a sazonalidade do produto, a proveniência
local e a sua origem biológica. Por outro lado,
o feedback do blogue permite-lhe verificar que os
pequenos luxos gourmet continuam a ter um público
feminino, apesar da crise. E dá como exemplo uma
receita recente que publicou com arroz aromatizado,
com gengibre e laranja, que provocou imensos
comentários e levou à procura do produto.

Cozinhar é trendy

Arquiteta, fotógrafa e apaixonada por culinária, Susana
Gomes, de 33 anos, alerta para um cruzamento de
tendências que acaba por valorizar a importância que
esta nova geração de mulheres adultas dá à comida.
O regresso à cozinha tornou-se trendy e estas mulheres
não dispensam as novas linguagens da culinária,
explica. Fazem compota de tomate, mas escolhem
tomate biológico e acrescentam uma nota de gengibre. «Um toque gourmet, que dá a algo simples um
twist diferente», refere.

A internet abriu-lhe as portas a um
mundo de receitas, há um acesso mais fácil a ingredientes diferentes e máquinas que
facilitam a experimentação de receitas
mais arrojadas.
Além disso, a comida ganhou mais
espaço e destaque nos media, tanto na
televisão (com programas e até canais
exclusivamente dedicados à culinária),
como nos jornais, revistas e internet.

Além dos escaparates dos quiosques
estarem cheios de revistas (uma oferta que
nada tem a ver com a Teleculinária a que tinham
acesso as gerações anteriores), através
do computador é fácil aprender mais. Com
o acesso a blogues e redes sociais, é hoje fácil
chegar à informação sobre os ingredientes,
conhecer as receitas de chefs e as sugestões dos
entendidos e até trocar impressões com pessoas
que já experimentaram a mesma receita.

A nova linguagem

Susana Gomes refere com à-vontade os termos ingleses
mais em voga nas conversas sobre culinária,
que mostram o tal cruzamento de tendências. Há
o fenómeno foodie, que denomina os apreciadores
de boa cozinha, há o chamado foodista, que é um
misto entre o foodie e a fashionista (viciada em moda) e
também a comfort food, aquela comida que nos traz de
volta os sabores e as memórias de infância. depois, há
o craft, que traduzido à letra diz respeito ao artesanato,
mas na realidade refere uma tendência mais abrangente
de valorização do original, do autêntico e do que é feito
com as próprias mãos.
Os adeptos do craft unem muitas vezes essa
paixão à da culinária. «Isso é bem visível nas redes
sociais. é não só da compota feita em casa que se fala
mas também da embalagem criada para o efeito»,
explica Susana Gomes.

O género feminino

Parece ser consensual existirem diferenças entre os
sexos no que toca à importância dada à comida. Susana
Gomes brinca com tendências femininas que constata
no dia a dia. Elas não só se passeiam numa loja
gourmet com a mesma postura de quem se delicia
numa perfumaria a ver as novidades, mesmo
que não tencionem comprar nada, como vão
mais longe. «As mulheres compram livros de
culinária com a intenção de tornar os seus
hábitos alimentares mais saudáveis, tal como
quem compra um vestido justo a acreditar
que vai emagrecer dois quilos já nas próximas
semanas. mas, invariavelmente, a receita que
experimentam primeiro é a do bolo de chocolate», conta a rir.

Para o chef do Porto Palácio Hotel, Hélio Loureiro,
«as mulheres, por tendência e tradição, não resistem
à frescura dos alimentos, aos peixes, aos legumes, às cores, aos frutos, aos doces... Já os homens gostam de carnes
vermelhas, carnes de caça, vinhos mais carregados e
queijos», realça. E isso mesmo verifica Susana Carreira, diretora
de marketing da loja gourmet Sabores da Herdade, em
Matosinhos. Os homens entram mais na loja à procura
de um bom vinho, elas mais para «ver as novidades»,
comprar temperos originais, azeites e compotas.


Veja na página seguinte: A moda que veio para ficar


As clientes têm por regra mais de 30 anos, formação
superior e muita curiosidade para experimentar.

A crise
nota-se como em qualquer outro setor, «mas se é uma
moda, o gourmet é uma daquelas que veio para ficar.
E quem compra, as pessoas que mantêm o seu nível
de vida, compram até, se calhar, mais», diz. Uma característica muito feminina também é a
fraqueza perante as embalagens mais atrativas.

Muitas
mulheres compram biscoitos caros com a justificação de
poderem reaproveitar a lata, gastam mais de 10 € num
litro de água glaciar com a desculpa de reutilizar a garrafa
e não resistem aos desejos vintage de alguns produtos
de mercearia.

Nem mesmo as mais habituadas ao meio.
À publicação inglesa, Rachel Khoo confessou o seu
maior pecado foodista. «Para mim, é o equivalente
francês dos cristais de sal de maldon, a que eles chamam
flor de sal», respondeu sem hesitações. Depois, segundo
a descrição da jornalista Elizabeth Day, que também
escreve sobre comida para o diário inglês The Guardian,
fez uma pequena pausa e acrescenta. «A flor de sal
vem numa caixa lindíssima», refere.

Texto: Helena Viegas com Susana Gomes (autora do livro de culinária «Velocidade Colher»), José Avillez (chef), Hélio Loureiro (chef) e Susana Carreira (diretora de marketing da loja gourmet Sabores da Herdade)