Nos últimos tempos, a reboque do Manifesto sobre a Legalização da Eutanásia e Suicídio Assistido, ouvimos alguns dos nossos governantes e decisores falar da escassez do número de registo de testamentos vitais (pouco mais de 2000), afirmando que o mesmo se deveria incrementar pois seria uma resposta para evitar a obstinação, entenda-se, futilidade terapêutica que está na origem de parte do sofrimento dos doentes em fim de vida.

A este respeito importa refletir de forma clara e científica sobre o documento e como o mesmo é visto em Portugal, tendo como base um estudo desenvolvido pelo Instituto de Ciências da Saúde da Universidade Católica Portuguesa e a Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos.

Na afirmação pelo direito à autonomia prospetiva, bem como a importância da vontade anteriormente expressa pela pessoa ser honrada, surge o Testamento Vital – Lei 25/2012. O que é o Testamento Vital (TV)? Qual o estado da arte no nosso país? Poderemos nós, profissionais de saúde, compreender esta lei como externa aos imperativos já vigentes do nosso exercício profissional, boa prática e Legis Artis? Quais os riscos da jurisdicionalização excessiva? Qual o contributo do testamento vital para a prática do respeito pela autonomia e autodeterminação, em situação? Qual a realidade portuguesa relativamente ao estado da arte – o Testamento Vital? De que forma foi realizada a divulgação, informação para a sociedade em geral e para os profissionais de saúde, em particular? Quem conhece e sabe o que é e como fazer o TV? Quem já o fez? Quantos Testamentos Vitais estarão registados no RENTEV? Terão os profissionais de saúde a capacidade de ajudar a pessoa no exercício da sua autonomia prospetiva, quer na perspetiva do procedimento, quer na reflexão acerca do seu conteúdo, essência e operacionalização? Serão as circulares informativas suficientes neste sistema de elucidação?

O Testamento Vital é um documento legal (Artigo 2.º, da Lei n.º 25/2012) pelo qual qualquer pessoa pode declarar as suas Directivas Antecipadas de Vontade (DAV). São apontadas como principais vantagens do Testamento Vital o facto da vontade da pessoa poder ser “ouvida” e respeitada, a realização do direito à autodeterminação preventiva ou autonomia prospetiva, a redução do impacto emocional da tomada de decisão pelos familiares e profissionais de saúde, a expressão do princípio constitucional da liberdade de expressão do pensamento e do culto, bem como uma ferramenta contra a obstinação terapêutica, permitindo, desta forma, a preservação e promoção da dignidade humana no fim da vida. Sob esta égide o testamento vital é apontado, erradamente, em nosso entender, como a possibilidade de morrer com dignidade.

Dizemo-lo porque no curso da vida descobrimos, paulatinamente, aquilo que realmente é importante, aquilo que dá valor e sentido à nossa existência e nos torna pessoas mais felizes. Cada escolha que fazemos reflete aquilo que somos, os valores, as crenças, os desejos; colocamos um pouco de nós em tudo aquilo que fazemos, em todas as experiências que vivemos, boas ou más.

Da mesma forma, o nosso sentimento de si não é inabalável e, quando confrontado com uma situação de doença, de grande sofrimento, de vulnerabilidade, o “eu” encontra-se perante decisões que, indubitavelmente, têm de respeitar e refletir a pessoa a que se refere, o seu “si”. Deste modo, podemos facilmente compreender que as decisões tomadas em situação de doença, de fim de vida não dizem apenas respeito aos aspetos clínicos (tratamento médico recomendado, riscos e benefícios), mas vão muito além dos dados objetivos e concretos, “a doença é talvez o contexto em que mais se permite a expressão de empatia, amor e valores humanos profundos”.

O estudo acima referido apurou que 78% dos portugueses não sabem em que consiste o testamento vital. Por outro lado, mostrou também uma perspetiva interessante, quando apurou que daqueles que sabem em que consiste, a esmagadora maioria (mais de 90%) obteve essa informação e conhecimento a partir dos órgãos de comunicação social, quando o deveriam ter obtido junto dos profissionais e instituições de saúde. Também revelou que apenas cerca de metade sabe como o realizar.

Daí que o essencial é o compromisso com a formação dos profissionais de saúde, bem como o esclarecimento e informação ao público, atendendo à baixa literacia do nosso país e ao ainda desconhecimento desta realidade na sociedade.

Fomentar a participação de um profissional de saúde no esclarecimento e informação para elaboração do testamento vital seria uma forma de acautelar o cumprimento dos princípios inerentes ao Consentimento Informado (ainda que prospetivo). Isto porque o Testamento Vital não é mais que uma extensão do Consentimento Informado, onde para ser considerado ética, deontológica e jurididamente válido, o cidadão deverá ser competente para tomar essa decisão, não estar coagido de alguma forma e estar na posse de toda a informação necessária.

Como então pensar, que se os profissionais de saúde se têm demitido desta sua função, que se promova o incremento de um documento que estará ferido de morte na sua génese, o respeito pelos princípios e pressupostos necessários? Terá um notário ou um funcionário administrativo competências para tal? Daí que mais prioritário que incrementar o número de Testamentos Vitais, será a aposta no combate à iliteracia em saúde da nossa população e por outro lado na promoção competências comunicacionais dos nossos profissionais de saúde. É aqui que reside o problema.

Existe um elevado défice comunicacional profissional de saúde-doente, o qual impede o doente/utente de ser parte ativa no seu processo de saúde através de tomadas de decisão partilhada. Será também necessária uma atualização da reflexão ética nos profissionais sobre o consentimento informado, pois é também uma área de fortes lacunas. Podemos muito claramente que uma grande proporção dos consentimentos informados, nomeadamente os escritos, não respeitam os pressupostos éticos e legais necessários, sendo que muitos até são dados e pedidos a familiares quando estes não estão mandatados para tal.

Parece-nos, assim, que o Testamento Vital, não deve ser entendido como um documento informativo unilateral, mas como uma oportunidade de decisão partilhada, acompanhada, esclarecida e que responda às necessidades e desejos expressos pela pessoa cuidada a cada momento da sua vida. Deste modo, cuidar de um doente que tem um Testamento Vital é sempre uma oportunidade redobrada de decisão partilhada pois, a existência de determinada informação (Testamento Vital) convoca o profissional à sua validação, esclarecimento, informação contínua, relativamente a potenciais alterações decorrentes da evolução da medicina e da tecnologia, bem como à renovação, ou não, da vontade expressa no documento.

Por Manuel Luís Capelas, Presidente da Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos e Professor no Instituto de Ciências da Saúde da Universidade Católica Portuguesa