Apesar do sabor amargo que invade cada um daqueles que, desde 2007, trabalham para construir um novo paradigma de desenvolvimento profissional do exercício da enfermagem em Portugal, há que olhar para as oportunidades do atual Estatuto e identificar com exatidão as ameaças.

Nesta Lei, aprovada à pressa, sem o necessário debate e negociação com os enfermeiros, identifico duas matérias que inexplicavelmente foram tratadas de modo “atabalhoado” e com enorme desrespeito pelo trabalho e direitos dos enfermeiros. Refiro-me à manutenção da atribuição de título de enfermeiro por um processo meramente administrativo e a limitação da especialização em enfermagem às seis especialidades que existem há mais de 25 anos.

Só pode tratar-se de um grande equívoco! De uma falta de consciência do impacto negativo, para a sociedade portuguesa, que uma alteração imponderada como esta pode determinar no futuro da enfermagem portuguesa.

Não posso acreditar que a mais elevada classe política deste país pretenda limitar o desenvolvimento dos enfermeiros e impedir uma profissão de responder a novas necessidades do cidadão.

Seria assustador

Seria assustador olhar para os enfermeiros como profissionais incapazes de consolidar e adquirir novas competências, reforçar a sua capacidade de intervenção e ajustar a oferta de cuidados de enfermagem às reais necessidades de saúde da população. A possibilidade da OE definir novas competências específicas, organizá-las numa especialidade e reconhecê-las constitui a garantia de que a Enfermagem é uma profissão dinâmica e com capacidade para dar resposta nos mais variados cenários socioeconómicos. Quartar esta capacidade, mesmo que temporariamente, é privar o sistema de saúde e os cidadãos de profissionais mais preparados.

Seria assustador reduzir o universo da enfermagem a seis especialidades, vedando a centenas de profissionais o direito de verem reconhecidas as suas distintas competências e de as assumirem perante a sociedade.

Seria assustador pensar que os enfermeiros pertencem a uma casta diferente das restantes profissões de saúde autorreguladas e que, por isso, estão impedidos de acederem à profissão através de um estágio.

A existência de um período de estágio com supervisão clínica, que reconheça, valide e certifique um conjunto de competências profissionais, é imprescindível à atribuição definitiva do título de enfermeiro e de enfermeiro especialista. A Prática Tutelada em Enfermagem para acesso à profissão é a base do Modelo de Desenvolvimento Profissional que, estando a ser trabalhado desde 2007 iria, entre outras questões, garantir à sociedade civil que os profissionais de enfermagem possuem todas as competências necessárias e fundamentais para exercer de forma independente a profissão.

Seria assustador aceitar que razões para a recusa do Exercício Profissional Tutelado, por parte do ministério, são meramente economicistas, encarando o período de estágio como um gasto e não como um investimento na qualidade dos profissionais e do próprio sistema de saúde.

Seria assustador continuar a ter uma OE que atribuísse o título de enfermeiro de forma meramente administrativa sem qualquer controlo de qualidade e tendo por base um simples diploma de um curso homologado pelo Ministério da Educação e Ciência.

E é porque entendo que se trata de um lamentável equívoco de uma classe política que tem deveres com os cidadão e os enfermeiros, que me proponho a iniciar, desde já, diligências para corrigir o que considero ser uma “aberração legislativa”.

Não se pode ignorar que a acreditação da idoneidade formativa continua a ser fundamental como promotora do desenvolvimento de profissionais, dos serviços de enfermagem e da melhoria da qualidade e segurança dos cuidados ao cidadão. Contudo, não se pode limitar o desenvolvimento de uma profissão a uma única estratégia.

Por Lúcia Leite, atual vice-presidente do Conselho Diretivo da Ordem dos Enfermeiros e Candidata a Bastonária