"Há uma grande discrepância entre aquilo que sabemos cientificamente e aquilo que continuamos a fazer na prática", disse à agência Lusa a coordenadora de Patologia Dual, Célia Franco, criticando a falta de vontade política para se alterar o paradigma de tratamento de adições.

A metodologia que hoje ainda é usada é "dos anos 50, 60 e 70" do século XX, levando a mais recaídas, desvalorização de possíveis doenças psiquiátricas de base e a um tratamento focado no fim do consumo, sublinhou.

Para Célia Franco, o trabalho do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD) foi "brilhante durante o século passado, mas atualmente está desatualizado". Defende, por isso, a remodelação da abordagem e a integração das adições nos serviços de psiquiatria.

Se se mantiver o atual modelo, alerta, vai-se continuar a "tratar doentes para sistematicamente recaírem, serem reinternados e voltarem ao ponto zero".

"No século passado, acreditava-se que as pessoas consumiam substâncias por alteração de comportamento. Com todos os trabalhos científicos realizados, começou-se a perceber que o nosso cérebro tem recetores para a canábis, cocaína ou heroína, e existem porque há substâncias no cérebro semelhantes a essas usadas para abuso e que são fundamentais para o equilíbrio do ser humano", explanou.

Partindo desse pressuposto, "percebeu-se que as pessoas que ficam dependentes de substâncias são pessoas em que esses circuitos neurobiológicos não funcionam adequadamente", referiu Célia Franco, uma das coordenadoras do livro "Doença Psiquiátrica e Adição", que reúne testemunhos de vários profissionais e especialistas nacionais e estrangeiros sobre esta problemática.

Antes, "pensava-se que o indivíduo era saudável antes de consumir", mas hoje sabe-se que, face a fatores biológicos, familiares ou de personalidade, as pessoas podem ter "maior ou menor vulnerabilidade" para ficarem dependente de uma substância.

O problema, sublinha, é que atualmente o tratamento está focado apenas na interrupção do consumo, sem atender ao porquê de "o indivíduo ter adoecido" e às possíveis situações "em que há fragilidade".

"Temos que perceber o que aconteceu para não conseguirem largar a substância. Isto não está dependente da vontade do indivíduo. Se estivesse, todos os doentes que tenho já tinham parado de consumir", frisou Célia Franco.

Com o atual paradigma, o que acaba por interessar "é se o indivíduo bebe ou não. Se não bebe, está bem, mas não interessa se não dorme, se chora a toda a hora, se se irrita com as pessoas", constata a especialista.

A médica psiquiatra dá o exemplo de um utente, viciado em heroína, que assim que retiraram a metadona teve "um episódio psicótico gravíssimo. Se o indivíduo tem uma dependência em opioides, é porque precisa de opioides e, uma vez estabilizado, este é um medicamento que ele tem de fazer toda a vida, como um diabético faz com a insulina", afirmou.

O livro foi apresentado hoje no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, tendo contado com a presença de Álvaro de Carvalho, diretor do Programa Nacional para a Saúde Mental, que apoiou a edição da obra.

O tema do livro e as preocupações nele espelhadas voltam a ser alvo de debate no 6.º Congresso Internacional de Patologia Dual e Aditiva, que decorre em Lisboa, entre 01 e 03 de junho.