26 de fevereiro de 2014 -  06h42

O CDS-PP e o BE estão em lados ideológicos opostos, mas ambos defendem a criminalização específica da mutilação genital feminina na lei portuguesa, apresentando hoje à discussão no Parlamento dois projetos de lei nesse sentido.

Os projetos de lei de centristas e bloquistas pedem a alteração do Código Penal, no sentido de nele incluir, “de forma evidente”, o crime de mutilação genital feminina (MGF), para “prevenir e punir” a prática enraizada em três dezenas de países, entre os quais a lusófona Guiné-Bissau.

Estima-se que 140 milhões de mulheres em todo o mundo vivam mutiladas e que três milhões de meninas estejam em risco anualmente, mais de meio milhão na Europa, de serem vítimas da prática que provoca lesões físicas e psíquicas permanentes.

Até agora, o entendimento jurídico colocava a prática de MGF sob a alçada do artigo 144.º do Código Penal, relativo aos crimes de ofensa à integridade física grave, punido com dois a dez anos de prisão. Mas a prática dos tribunais parece exigir disposições mais claras, já que houve “casos que, num passado recente, foram arquivados”, por não terem sido considerados “ofensas à integridade física graves”, assinalou recentemente a secretária de Estado dos Assuntos Parlamentares e da Igualdade.

Essas situações demonstram que “aquilo que se pensava (…) que era suficiente e claro” na lei, afinal “nem toda a gente entende”, interpreta Teresa Morais, defendendo, por isso, a “clarificação do Código Penal”. Os projetos de lei do CDS-PP e do BE – que, a serem aprovados, abrirão caminho à 31.ª alteração ao Código Penal – autonomizam o crime de MGF, dando-lhe uma moldura penal de “ofensa à integridade física qualificada”. Ou seja, quem cometa ou force a cometer o ato será punido com três a 12 anos de prisão.

O projeto de lei do BE recorda que “é um facto comprovado" que
Portugal é um país “de risco”, devido aos fluxos migratórios,
sustentando que a individualização do crime vai reforçar “o combate” à
prática.

A MGF “constitui uma grave violação dos direitos
humanos, a que nenhuma tradição cultural ou religiosa se pode opor”,
explicita o projeto de lei do CDS-PP, que recorda ter sido “pioneiro" na
"tentativa de criminalização” da MGF, quando, em 2003, apresentou à
discussão em plenário um projeto de lei nesse sentido.

Na altura,
os restantes partidos com assento parlamentar, incluindo o PSD,
consideraram que a criação do crime de MGF poderia ter como efeitos
nocivos a estigmatização de uma comunidade específica (no caso
português, sobretudo oriunda da Guiné-Bissau) e, consequentemente, de
uma maior ocultação da prática.

O projeto de lei dos
democratas-cristãos pune a mera tentativa e estabelece que o crime é
independente "do consentimento da vítima, que não releva para este
efeito, nem depende de queixa”. Já o BE pune igualmente, com pena de
prisão, quem incentive ou providencia os meios para que o crime tenha
lugar.

Situação em Portugal por avaliar

Em Portugal, desconhece-se a dimensão do fenómeno. A base de dados sobre a matéria já foi elaborada pelos serviços de saúde, mas o tratamento da informação está ainda dependente de autorização da Comissão Nacional de Proteção de Dados.

A prática, que causa lesões físicas e psíquicas permanentes, é mantida em cerca de 30 países africanos, entre os quais a lusófona Guiné-Bissau, onde se estima que 50 por cento das mulheres sejam afetadas.

A mutilação genital feminina é feita de diversas formas: em
algumas corta-se o clítóris, noutras os grandes e os pequenos lábios.
Uma vez concretizada, é irreversível e se a vítima sobreviver irá sofrer
consequências físicas e psicológicas permanentes.

Além do
sofrimento que as mutiladas sente no momento do corte, o processo de
cicatrização é acompanhado com frequência por infeções, devido ao uso de
utensílios contaminados, e dores ao urinar e defecar. A incontinência
urinária e infertilidade são outras das sequelas.

O facto de serem usadas as mesmas lâminas para mutilar várias crianças aumenta o risco de se contrair o vírus da SIDA.

Além
da mãe, também os recém-nascidos podem sofrer com a mutilação. Segundo a
Organização Mundial de Saúde, a taxa de mortalidade infantil é mais
elevada em 55 por cento em mulheres que sofreram uma mutilação de tipo
III (a infibulação, que consiste em fechar a abertura vaginal).

SAPO Saúde com Lusa