Avaliar o que numa paisagem é de labor humano e de berço natural não é desígnio de fácil concretização. Mesmo que à partida pareça. Um edifício nasce de pulso humano, uma vinha também, um carvalhal ou um olival terão geração espontânea, mesmo que só aparentemente. Uma mão incógnita pode ter lançado à terra, décadas antes, as sementes que fortificaram. Longe, a linha de montanhas perfila-se desde o princípio dos tempos, mas as filas de bosques nela alcantilados nasceram de ímpeto humano.

Assim poderíamos continuar, neste exercício de categorizações, tendo por mote o pedacinho de território do Dão onde nos encontramos. No concelho de Nelas, mais concretamente em Vilar Seco, a terra respira pacatez, neste Centro de Portugal. Região de contornos abruptos e montanhosos. Aqui, descansando, contudo, num planalto entre os 400 e os 700 metros de altitude.

Caminhos Cruzados e a história de uma adega que nasceu num berço de vinhas
É Lígia Santos quem dirige atualmente a Caminhos Cruzados a par do pai Paulo Santos. Uma família com ligações profundas a Nelas.

Em torno coabitam as sombras altas dos pinheiros e os vultos atarracados dos olivais. A erva verde e fresca rompe entre a vegetação trigueira. Longe os contornos mais ou menos evidentes da gigante Serra da Estrela, das serranias do Caramulo e do Buçaco. Novembro já vai generoso de dias no calendário e a vinha ampla da Quinta da Teixuga, assume tons pardacentos. A espaços, um cacho esquecido de uvas cresta ao sol baixo e ganha aquela doçura de passa de que gostamos. Findo o caminho, a meia centena de metros da estrada, está a singularidade que habita esta paisagem.

É neste ponto, que a linha de fronteira entre o humano e o natural se esbate. A nova adega do produtor Caminhos Cruzados assume-se plenamente na paisagem. Dois milhões de euros de investimento que resultaram num edifício com perto de dois mil metros quadrados de puro betão armado. Assim dito, na crueza dos números e dos materiais, parece ferir os delicados contornos naturais do território.

Acontece que a nova casa da Caminhos Cruzadas foi pensada para conviver com este território. Que o diga o arquiteto Nuno Pinto Cardoso, autor do projeto, face ao desafio que lhe foi proposto em 2014, pela equipa desta Casa inserida na região do Dão, nascida em 2012. Construir uma adega energeticamente sustentável e com um compromisso ambiental. Para mais com uma estrutura que dispensa pilares internos e com uma fronte idêntica ao logótipo da empresa e ao conceito da mesma, duas linhas que se cruzam.

Caminhos Cruzados e a história de uma adega que nasceu num berço de vinhas
A Caminhos Cruzados conta com 37 hectares de vinhas, exploradas em duas propriedades. Compra, ainda, uva a produtores locais.

Forma e função em casamento harmonioso, como aprendemos na escola. Aqui uma forma adaptada ao conceito base desta família de vinhos que é a Caminhos Cruzados. “A vida não se faz sempre por caminhos retos. Há vias menos óbvias que nos levam a lugares fascinantes. Os cruzamentos são por isso lugares de partilha e de encontros, como acontece no seio desta família, com membros com formações académicas distintas”. É Paulo Santos, o homem que engendrou a Caminhos Cruzados quem nos explica o conceito. É ele o anfitrião desta visita. Junta-se-lhe a filha, a incansável e sempre afável Lígia Santos, que deixou a carreira na advocacia para dirigir a empresa. Atividade que exerce neste momento a “tempo inteiro”. Dois mil e dezassete marca o ano em que Lígia acompanhou toda a vindima. Uma vindima precoce, em agosto, fruto do ano quente e seco que atravessámos.

Uma adega num berço de vinhas

Foi no berço de vinhas novas, plantadas há três anos, que nasceu a nova adega. Imaginemo-la como dois enormes monólitos que, de uma posição ereta inicial, frente a frente, tombaram sem choque e sem se destruírem mutuamente. Tocam-se no solo. Sob os dois portentos em betão, abre-se a porta para o seu seio. Ocorre-nos a intemporalidade da pedra, do xisto e do granito dos solos da região. Depois, a delicadeza das vinhas perfilando-se a partir deste centro pétreo.

Caminhos Cruzados e a história de uma adega que nasceu num berço de vinhas
Entrada da nova adega, estrutura inaugurada no verão de 2017.

Paulo e Lígia explicam ao SAPO Lifestyle que “a vinha atualmente em torno da adega foi plantada ainda mesmo antes da obra. Existia literalmente um buraco no centro da vinha”. Paralelamente aos cinco hectares plantados de vinha nova, era recuperada vinha velha, alguma com 50 anos. No total, a Caminhos Cruzados conta com 32 hectares de vinhas, 15 na Teixuga, 17 numa outra propriedade. “Tudo em respeito pelas castas da região, nomeadamente a Touriga Nacional, Alfrocheiro, Jaen, Tinta Roriz, Encruzado, Bical e Malvasia Fina”, sublinha Paulo. Um empreendedor que em 2014 arrendava “por 45 anos a Quinta da Teixuga. Em 2012, Paulo deixava a cidade do Porto onde vivia. “Quis regressar às origens, investir no mundo dos vinhos e produzir néctares ´Fora da caixa`”, como nos diz. Uma aposta que está a dar frutos. Em 2015, a casa ganha o Prémio Produtor Revelação do Ano, distinção atribuída pela “Revista de Vinhos”.

O primeiro vinho feito em 2010 (anterior à marca), resultou de uva comprada a produtores locais. Em 2011 Paulo Santos faz os primeiros vinhos de uva própria. “Na época estávamos localizados no centro da vila de Nelas e a entrada e saída de viaturas da adega causava literalmente um engarrafamento na localidade”, refere o nosso interlocutor.

Em 2018 vamos provar um Teixuga Tinto de 2014

Era chegada a hora de pensar na nova adega e de a conciliar com a funcionalidade e a estética. “Queríamos uma estrutura energeticamente sustentável e em respeito pelo ambiente. O betão armado retém a temperatura. Ou seja, absorve-a nas paredes exteriores e liberta-a lentamente para o interior”, conta-nos Paulo no périplo que fazemos na área de vinificação da Caminhos Cruzados. Lígia alerta-nos para as janelas e claraboias que “deixam entrar, abundante, a luz natural e promovem a circulação natural do ar”. Acresce um sistema de aproveitamento da água da chuva. “Tudo foi pensado para obtermos baixos custos de manutenção nos próximos 50 anos”, junta Paulo enquanto percorremos um caminho pejado com mais de quatro dezenas de cubas de inox.

Caminhos Cruzados e a história de uma adega que nasceu num berço de vinhas

Na nova adega está a ser produzido o topo de gama, o Teixuga Branco D.O.P. 2013, lançado no mercado em maio de 2016. Um vinho que descansou 19 meses em barricas novas de carvalho francês na grande sala de estágio, para depois repousar mais 12 meses em garrafa. Contas feitas, repousam nesta penumbra de temperatura e humidade controladas, “135 barricas novas de carvalho francês, de 225 e 300 litros”, conta-nos a enóloga residente da Caminhos Cruzados, Carla Rodrigues. Uma equipa de enólogos que se completa com Manuel Vieira, um histórico dos vinhos do Dão e com Carlos Magalhães. Um trio responsável pelo portefólio de vinhos da Caminhos Cruzados e que inclui, para além do Teixuga, as gamas Titular (a primeira marca do produtor, exclusivamente com uvas de produção própria); Terras de Santar (criado para a grande distribuição, com castas típicas do Dão); Terras de Nelas (vinhos jovens e simples).

caminhos cruzados
Da esquerda para a direita, a enóloga Carla Rodrigues, o enólogo Manuel Vieira, Lígia Santos e Paulo Santos.

É Manuel Vieira quem, na nova sala de provas e também loja de vinhos da Caminhos Cruzados, nos faz a pré-apresentação de uma novidade deste produtor. “Em outubro de 2018 vamos poder contar com o Teixuga Tinto 2014. Para o mercado irão duas mil garrafas. Um topo de gama, na linha congénere Teixuga Branco, produzido de uvas provenientes de uma vinha velha, com 50 anos, conhecida pelas castas Encruzado e Touriga Nacional. O engenheiro Manuel Vieira dá-nos um enquadramento: “Os vinhos topo de gama precisam de tempo, sejam tintos ou brancos. Os tintos particularmente e, estes, do Dão, mais ainda. Quando comecei aqui no Dão, fazia o Grão Vasco que entrava em garrafa volvidos seis anos. Este Teixuga esteve mais de 20 meses em barricas de carvalho francês. Um blend com as castas selecionadas barrica a barrica”.

Um vinho posto à prova num almoço de harmonização conduzido à mesa pelo chefe de cozinha Paulo Gonçalves. O Carré de borrego com puré de aipo e legumes, intenso nos sabores, casou com este Teixuga Tinto. Um néctar que a enóloga Carla Rodrigues tem a oportunidade de comentar: “no aroma é muito complexo, com especiarias, tostas da madeira, muito corpo, frescura cítrica. Diria que é um vinho com o carácter do Dão. Na boca, está muito equilibrado tem uma boa frescura. Um vinho de madeira pode ser chato. Não é o caso. Os taninos ainda estão bem vivos, mas não são fortes. Persiste na boca por muito tempo”.

Caminhos cruzados
Sala de estágio. Cento e trinca e cinco barricas novas de carvalho francês.

Neste mesmo almoço é apresentada uma outra novidade, o Family Edition Branco, 2015, em harmonização com o Aveludado de bacalhau. Conta-nos Manuel Vieira: “este vinho foi um desafio que a Lígia e o Paulo nos deixaram para comemorarmos a nova adega em 2017. Costumo dizer que uma barrica vazia é muito má para a madeira. Daí, o que fazemos neste caso é ir buscar lotes que estão em inox e levá-los a barricas onde estagiaram vinhos muito bons. Gosto muito de lá deixar vinhos brancos para ver o que acontece. E muitas vezes o resultado é bom”. Neste caso, o Family Edition Branco 2015, um blend com as castas Encruzado, Bical, Malvasia e esteve nove meses na barrica.

Neste Dão de contornos cambiantes, não é uma mancha na paisagem a nova adega da Caminhos Cruzados. É antes uma nova forma de nos acomodarmos a uma paisagem que também muda, como o faz a natureza ao chamamento das estações. Como nos diz Paulo, “não temos feitio para nos acomodarmos”. Este empreendedor e a filha, Lígia, inovam na paisagem e nos vinhos não perdendo o norte da linhagem familiar que os traz ligados à vila de Nelas. Isso mesmo está patente nos rótulos dos vinhos Titular, onde a assinatura do patriarca da família está impressa.

Caminhos Cruzados

Quinta da Teixuga, Estrada Municipal de Algeraz – Carvalhar Redondo, Nelas

Tel.: 232 940 196; email: geral@caminhoscruzados.net

O produtor tem uma componente de Enoturismo com visitas à adega, vinha e prova de vinhos, piqueniques nas vinhas, peddy paper, workshops, entre outras atividades.