Estocolmo é para André Pintado mais do que uma viagem ou referência geográfica, é um ponto de viragem na sua vida. Foi na capital Sueca, depois de provar uma cerveja artesanal norte-americana, que a paixão por esta bebida o tomou. Seis anos volvidos, André tem uma marca própria em parceria com o australiano Robert Klacek. A Passarola Brewing foi, inclusivamente, considerada como “Portugal Best New Brewer” no principal site mundial sobre cervejas artesanais.

Ao Sapo Lifestyle, André relata a sua aventura neste mundo craft. Elege o top cinco das cidades para se provar uma boa cerveja. Aborda a importância e os atributos para reconhecer uma cerveja de qualidade, uma fórmula onde também cabem os “acidentes felizes”. Quando um resultado não esperado assina uma cerveja diferente, para melhor. André explica-nos as regras de harmonização de uma cerveja artesanal com comida e não esconde o gosto pelo casamento entre cerveja e queijo.

André, de jovem engenheiro informático ao maior provador de cervejas português. Como surgiu este percurso, digamos, de explorador?

Este percurso surgiu bastante naturalmente. Através do interesse que sempre tive em comida e bebida não tradicional, como por exemplo alimentos importados, cerveja importada. Comecei a perceber que havia um movimento craft cervejeiro muito interessante fora do país. O momento “wow” deu-se numa viagem à Suécia em 2011, onde provei cervejas incríveis. Foi também nessa viagem que comecei a tomar nota das cervejas que bebia, e desde então até hoje estou prestes a passar as 3500 cervejas diferentes registadas.

Presumo que planeie as suas viagens em função das cervejeiras que vai encontrar no país de origem, certo?

Sim, quando consigo viajar, geralmente procuro tomar nota de cervejeiras e pubs locais que poderão ter boa cerveja. Das minhas viagens diria que o meu top 5 é São Francisco, Londres, Barcelona, Estocolmo e Bruxelas. Mas tenho ainda muitos países e cidades por visitar.

Qual foi até hoje a cerveja mais marcante que provou e porquê?

Houve várias cervejas que me marcaram por diferentes razões, mas diria que a cerveja que me criou o bichinho da cerveja artesanal foi uma norte-americana, a Great Divide Titan IPA que bebi à pressão no Man in The Moon em Estocolmo em Setembro de 2011.

André Pintado, o Senhor das Cervejas já provou 3500 artesanais
"Quando consigo viajar, geralmente procuro tomar nota de cervejeiras e pubs locais que poderão ter boa cerveja".

Em sentido inverso, antecipou um momento que, na prática, o defraudou?

Na realidade há vários. Na maior parte das vezes, numa prova não-cega, criamos uma determinada expectativa em relação a cerveja que vamos beber, seja pelo marca, pelo rótulo, pela aparência, pelos ingredientes ou por aquilo que ouvimos falar acerca dela. Já me aconteceu várias vezes beber cervejas medianas de cervejeiras badaladas.

O André acumulou nestes últimos anos muitas e interessantes histórias relacionadas com a produção/comercialização das cervejas artesanais. Não quer partilhar connosco duas ou três? 

“Se há mercado que é verdadeiramente democrático é o da cerveja artesanal”
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Há um fenómeno curioso que demonstra bem o quão versátil é o movimento de cerveja artesanal, e o quão flexíveis são os negócios pequenos em contraponto com a rigidez dos negócios grandes. Regularmente acontecem acidentes em produções que fazem com que a cerveja final saia diferente daquela que estava inicialmente planeada. O cervejeiro adapta-se, adapta o nome, adapta o marketing, e ela vem para a rua e tem aceitação tal como outra cerveja qualquer. Há muitos casos de cervejas disponíveis comercialmente que surgiram de felizes acidentes. Uma delas é a Long Time no See, da To Øl, que por esquecimento acabou por ferver durante mais tempo do que era suposto, por consequência criou mais açúcares fermentáveis e acabou com 12.8% de álcool em vez de 6%. O slogan da Närke, uma cervejeira sueca que aprecio muito, é “beer is art!”. Creio que este slogan se encaixa perfeitamente a estas situações.

Tal como nas cervejas industriais, existem diferentes tipos de cerveja artesanal. O André quer falar-nos sucintamente do que considera importante os consumidores saberem?

É importante os consumidores saberem que existem duas categorias principais de cervejas (ales e lagers) que se distinguem pela levedura que as cria e a temperatura a que fermentam. Dentro de cada uma destas categorias, existem várias subcategorias e, ainda, outras subcategorias. Antes de provar uma cerveja, as pessoas devem procurar informar-se acerca do estilo da cerveja que estão a beber, para poderem criar uma base de conhecimento sólida para criar opiniões e preferências. Loira, ruiva ou preta, não é suficiente.

quando consigo viajar, geralmente procuro tomar nota de cervejeiras e pubs locais que poderão ter boa cerveja
André não se coíbe de lançar mãos-à-obra na produção da sua cerveja artesanal, a Passarola Brewing.

Comecemos pelas matérias-primas, quais as características que considera fundamentais para a produção de uma boa cerveja artesanal?

Não creio que possamos generalizar em relação a características fundamentais que resultam na produção de uma boa cerveja artesanal. Cada cerveja tem os seus ingredientes e o perfil. É importante que os ingredientes sejam frescos e tenham sido bem conservados, mas mais do que os ingredientes, diria que um bom controlo do processo ponta-a-ponta, desde a moagem ao engarrafamento passando pela temperatura de fermentação, são o garante de uma cerveja consistente e de qualidade.

As cervejas artesanais têm geralmente uma aparência muito diferente das industriais. O consumidor estreante está preparado para as diferenças que vai encontrar? É caso para dizer “primeiro estranha-se, depois entranha-se”?

A aparência da cerveja artesanal pode variar. Há, inclusivamente no mercado português, cerveja artesanal extremamente turva, ou extremamente nítida, com uma espuma grande ou sem espuma. Embora a aparência da cerveja seja importante, é só uma pequena parte da experiência. A educação é importantíssima numa área como a cerveja artesanal, e o consumidor estreante tem sempre de ter uma explicação acerca do que está a beber. O trabalho de educação geralmente recai sobre o retalhista ou sobre o cervejeiro. A minha experiência, e a dos meus colegas, diz-me que não é difícil a cerveja entranhar-se no consumidor desde que o trabalho de onboarding seja bem feito.

Façamos uma comparação [com as devidas distâncias] com o vinho, neste caso com a prova. Este é um processo complexo, distinto da mera apreciação. Como se desenrola esta prova no “mundo” das cervejas artesanais?

Não são, na realidade, processos muito diferentes. É certo que as folhas de avaliação de uma cerveja diferem um pouco das do vinho, mas numa avaliação procura-se sempre avaliar a qualidade do produto versus aquilo que o produto diz ou procura ser. Na cerveja existem cinco critérios principais de avaliação: Aparência, Aroma, Sabor, Palato e Impressão Geral. Nos quatro primeiros procuramos avaliar a cerveja consoante o estilo a que foi submetida a cerveja, e no último avaliamos a cerveja de uma forma mais geral juntando o encaixe no estilo e o prazer que tiramos de a beber. Pode haver alguma subjetividade neste último critério, e por isso é permitida uma discussão liderada por um chefe de mesa.

Ao André, a exigência inerente a uma prova de cerveja, não lhe retira alguma da magia da degustação?

Felizmente consigo mudar o chip quando entro ou saio de numa prova. Se estou a provar para avaliar, geralmente estou mais concentrado e procuro ser mais completo do que quando estou a degustar por lazer. Se estou a degustar por lazer, estou à procura de um bom momento, se possível partilhado.

Passemos agora para a gastronomia, considera que as cervejas são um acompanhamento, um complemento ou um elemento de elevação de uma refeição?

Tal como com o vinho, considero que podem e devem ser um elemento de elevação de uma refeição, nunca lhe tirando o protagonismo.

André Pintado, o Senhor das Cervejas já provou 3500 artesanais
"Regularmente acontecem acidentes em produções que fazem com que a cerveja final saia diferente daquela que estava inicialmente planeada. O cervejeiro adapta-se, adapta o nome, adapta o marketing, e ela vem para a rua e tem aceitação tal como outra cerveja qualquer". créditos: Paulo Sousa Coelho

No caso dos vinhos existem algumas regras básicas para os combinar com a comida, quais são estas regras para as cervejas?

Quando faço as minhas harmonias ou sugestões, procuro sempre simplificar a combinação. Geralmente combino pratos ligeiros e estivais com cervejas não muito alcoólicas e não muito amargas. Pratos salteados ou com alguma gordura e especiarias com cervejas amargas e mediamente alcoólicas. Para pratos mais intensos, cervejas mais alcoólicas e intensas. Adoro combinar cerveja com queijo, porque acho que há harmonias possíveis com todo o tipo de queijos.

Passemos agora à sua iniciativa com três anos, a Passarola Brewing, um projeto a quatro mãos com o australiano Robert Klacek. Como surgiu esta parceria e a designação da cervejeira?

Conheci o Rob em inícios de 2014 na Sant’Ana LX Brewery (agora LX Beer), na altura ele era o cervejeiro a tempo inteiro e eu apenas ajudava no que fosse necessário. Antes do verão de 2014 o Rob saiu da cervejeira, e durante umas largas semanas conversámos sobre a possibilidade de fazer uma cervejeira nómada que juntasse a vasta experiência dele como cervejeiro caseiro e a minha experiência e interesse pela prova. Na realidade, foi o Rob que chegou ao nome Passarola quando estávamos à procura de um nome de algo português que pudesse transmitir a coragem e persistência tão reconhecidamente portuguesas doutros tempos. Levámos semanas a chegar a um nome que ambos gostávamos e que tinha um significado.

André Pintado, o Senhor das Cervejas já provou 3500 artesanais
A marca criada por André Pintado e pelo australiano Robert Klacek.

Quais os vossos objetivos em termos apresentação de diferenciação de produto no mercado?

Em termos de imagem procuramos algo português, mas queremos também transmitir uma ideia de inovação, ciência e algum humor. Os nossos produtos procuram ser inovadores não esquecendo aquilo a que os ingleses chamam de drinkability. Todas as nossas cervejas seguem estes dois vetores. Nós fazemos cerveja para o consumidor comum, e o consumidor comum não procura cervejas difíceis de beber. Já fizemos cervejas com malte fumado, hibisco, café, envelhecidas em barrica de vinho tinto, entre outras.

Um ano após o início da produção foram considerados como “Portugal Best New Brewer” no principal site mundial sobre cervejas artesanais, o Ratebeer. Foi uma surpresa?

Foi de certa forma uma surpresa porque havia outros bons cervejeiros em “competição” também. Digo “competição” entre aspas, porque os prémios do Ratebeer são baseados em avaliações da comunidade, e em avaliações de um júri. Este prémio teve algum impacto nas vendas nacionais, sobretudo na abertura de novos clientes. Em termos internacionais, teve e ainda tem alguma visibilidade, e estabelecemos alguns bons contactos graças a isso.

 André Pintado, o Senhor das Cervejas já provou 3500 artesanais

Como considera que está a “saúde” da produção nacional na generalidade?

Globalmente encontra-se melhor que nunca. A qualidade da produção está a aumentar. O interesse e promoção internos da cerveja artesanal está a aumentar, e consequentemente o mercado está a aumentar. Ainda temos um longo caminho a percorrer mas considero que já se bebem algumas cervejas nacionais melhores que algumas internacionais, e isso é de louvar.

Seria vantajoso unirem-se todos os produtores numa associação, expressando-se a uma só voz, para conseguirem ter mais impacto a nível nacional e internacional?

Sim. No ano passado foi criada a ANC - Associação de Cervejeiros  que tem como objetivo a promoção, educação, legislação e desenvolvimento da cerveja artesanal portuguesa. Cervejeiros do Norte a Sul juntaram-se e estão neste momento a preparar atividades e ações de divulgação da cerveja artesanal nacional. Há muito trabalho por fazer e toda a ajuda e ideias são bem-vindas.

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