Num mundo onde as fronteiras entre os géneros feminino e masculino estão cada vez mais próximas, nalguns casos quase esbatidas, o espírito andrógino tem vinho a ganhar novos contornos. Mais do que o que se vê na passerelle, a tendência é quem se vê na passerelle. Mais do que usarmos o que queremos, é sermos quem queremos. É o poder da moda a favor da identidade. Conheça a androginia do século XXI. Estávamos em plena década de 1990, quando a irreverência e a rebeldia tomavam as rédeas de uma geração perdida num mixed feeling entre o grunge e a androginia.

Na rádio, a linha que separava os géneros masculino e feminino era incessantemente questionada. Quem não se lembra do refrão de uma das canções mais emblemáticas da banda britânica Blur que dizia «Girls who are boys/Who like boys to be girls/Who do boys like they're girls/Who do girls like they're boys»? Traduzido à letra, o tema fala de «raparigas que são rapazes e que gostam de rapazes que parecem raparigas e que comem rapazes como se fosse m raparigas» e por aí fora…

E quem não se recorda de Boy George, o cantor com os trejeitos (e o batom) de uma ela? Ou de Grace Jones com o seu ar arrapazado? Ou ainda de Annie Lenox que, apesar da voz delicada, aguda e feminina, chegou a ter de ser submetida a um teste para provar que era mulher? Tudo porque a sua aparência apontava para o sexo, dito, forte. A carga genética do agora aclamado estilo andrógino é enorme e pouco ou nada se resume a uma tendência. Pelo menos, não a uma tendência de moda.

Um estilo que vai muito para além da moda

A androginia carrega, há dezenas de anos, um papel importantíssimo que vai muito além de um estilo onde a mulher veste, literalmente, as calças ou uns sapatos com brogues à superfície. Se na década de 1990 a androginia era sinónimo de rebeldia, nos anos da de 1980 a sua função era outra e representava o power dressing, com os seus enchumaços, que injetavam na mulher uma sensação de superioridade dificilmente alcançada com uma blusa ou um vestido.

A altivez de um salto alto hoje era, no passado, transmitida através do fato masculino, ajudando a mulher a vingar no mercado de trabalho numa das melhores décadas de sempre da economia. Mas a história não se fica por aqui... Também nos (loucos) anos da década de 1920, mademoiselle Coco Chanel quebrou as regras cortando com corpetes e todas as indumentárias que aprisionavam as mulheres.

Fatos, em tweed de saia e casaco em tons neutros, substituíam corpetes apertadíssimos e os penteados elaborados e pouco práticos davam lugar ao cabelo curto e confortável. A segunda guerra mundial pode também ser uma causa, com a repentina ausência da classe masculina para o campo de batalha, que obrigou as mulheres a arregaçarem as mangas em looks completamente masculinizados, imprescindíveis às árduas tarefas que lhes foram incumbidas. Quando, em 1966, Yves Saint Laurent propõe o seu famoso smoking, ninguém se choca. Pelo contrário, as parisienses da Rive Gauche aplaudiam e agradeciam.

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O espírito andrógino nos dias de hoje

Chegado o ano 2000, Heidi Slimane, então diretor criativo da Dior Homme, propõe o look rock unissex, composto por blazer, calça slim e derbys. O masculino de sempre, apenas mais polido e aperfeiçoado. No final, fica claro que mais que uma tendência de moda, a androginia representa (sempre representou) um comportamento, uma atitude, um ato de insatisfação refletido na roupa e/ou aparência. Segundo a definição de dicionário, a pessoa andrógina é alguém que «apresenta características sexuais ambíguas».

Alguém que «não tem características marcadamente femininas nem marcadamente masculinas». No entanto, e com a tendência a ganhar terreno, são muitas as dúvidas que se colocam. Até que ponto é que a androginia anda de mãos dadas com a homossexualidade ou bissexualidade? Será que a mulher que se veste como um homem já não pretende apenas a emancipação, uma vez que esse trabalho foi feito ao longo da história. A mulher que prefere um look masculino é homossexual?

E o homem mais delicado que não em foco dispensa uma camisa floral é obrigatoriamente gay? Ou, pura e simplesmente, o ser andrógino é não se identificar, nem se apresentar, como apenas homem ou mulher, tendo qualidades masculinas e femininas, acabando por se considerar um terceiro género separado? A atualidade diz que sim mas a discussão está longe de ser dada como concluída.

Género feminino, masculino, ambos ou nenhum?

Com origem no latim, andro significa homem e gino quer dizer mulher. Assim, os andróginos podem (e estão) a abrir portas a um novo género. São os chamados gender benders que afirmam estar intencionalmente a distorcer (bending) ou a desafiar, transgredindo, os papéis de género estabelecidos pela sociedade. Não-binário é o género (ou não-género) que despreza a ideia de uma dicotomia entre macho e fêmea, transitando entre as duas. Segundo a historiadora de moda Amber Butchart, «estamos hoje perante um movimento impulsionado pela indústria da moda».

Um movimento «que joga com as questões ligadas ao género (as barreiras do género estão a tornar-se fluídas). Temos modelos como o transsexual bósnio Andrej(a) Péjic a desfilar womenswear e mulheres como Casey Legler a desfilar roupa masculina», refere. É o fim da era dos géneros como os conhecemos. Se, por um lado, personalidades como Tilda Swinton, Audrey Tautou, Emma Watson ou a modelo Agyness Deyn, esta última de estilo assumidamente tomboy, surgem nas revistas e blogues de moda como sendo rainhas da androginia, títulos alcançados apenas pela forma como se vestem.

Por outro, modelos como Freja Beha Erichsen, Catherine McNeil ou Harmony Boucher acrescentam à forma de vestir andrógina, uma escolha de vida, a da sua homossexualidade. Até aqui tudo bem. A verdade é que só vimos as barreiras serem derrubadas. De facto, quando as luzes da ribalta se acenderam nos últimos seis anos, para personalidades como Péjic, Legler ou Lea T. Todos modelos, nenhum convencional. Uma modelo feminina que trabalha exclusivamente como modelo masculino. A questão é que pouco interessa.

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Como a psicologia vê a androginia

Já percebemos que a androginia pode ser apenas uma questão de moda mas, em termos de psicologia, o que significa? Catarina de Castro Lopes, psicóloga clínica na Psinove e na White Clinic responde a esta dúvida. «O indivíduo andrógino tem características físicas e/ou comportamentais de ambos os sexos, como se não fosse nem masculino, nem feminino, ou fosse ambos. Pode até tornar-se difícil definir a que género pertence» e isto, assegura, «não está relacionado com a sua orientação sexual, mas sim com a sua aparência física e/ou comportamento».

Portanto, podemos falar de androginia fisiológica e psicológica. A primeira, realça a psicóloga, verifica-se quando acontecem «alterações hormonais (genéticas ou adquiridas) ou deve-se a uma constituição física ou fisionomia associada a uma aparência andrógina». A segunda acontece quando as pessoas se identificam e se definem «como tendo sentimentos e traços comportamentais que são quer masculinos quer femininos. Sentem que não pertencem a nenhum dos sexos em particular (ou pertencem a ambos), usando roupas e acessórios do sexo oposto para salientar a sua dualidade», explica a especialista.

Também é comum que «pessoas insatisfeitas com a estereotipia dos papéis sexuais se possam comportar e/ou parecer andróginas». Catarina de Castro Lopes salienta ainda que a moda valoriza este tipo de corpo. «Não é raro assistirmos a desfiles com mulheres de rosto angular com cabelo curto e com poucas curvas e homens de traços mais delicados, cabelo longos e maquilhagem no rosto. A moda torna-se cada vez mais unissexo, as mulheres usam blazers e gravatas, os homens acessórios, calças justas e echarpes», diz.

Este look andrógino, sublinha, «faz com que jovens modelos tenham um corpo extremamente magro, com peso muito inferior ao esperado para a idade e altura, corpo alongado e sem curvas, rosto pálido, contrariando a feminilidade (mulheres curvilíneas) ou a masculinidade (tórax desenvolvido) e natural distribuição pilosa». Estes padrões de beleza passados pelos media, reforçando a magreza como corpo ideal, alerta a psicóloga, «podem influenciar alguns jovens adolescentes e ter repercussões na forma como percecionam o seu corpo, levando a estados afetivos negativos e comportamentos pouco saudáveis relacionados com o seu comportamento alimentar e imagem corporal».

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Poder e liberdade… também sexual!

«A moda não é o mundo livre que toda a gente julga que é. Coloquei a Lea [T] num desfile meu e as pessoas reagiram como se ela fosse de outro mundo». Num número inteiramente dedicado à androginia, a revista Love entrevistou o designer italiano Ricardo Tisci, também conhecido como champion of trans, que afirmou que a sexualidade vive na escuridão, não vendo a luz do dia. E, retomando ao espanto do público em geral, quando a transexual brasileira desfilou sob a sua alçada, Ricardo Tisci defendeu-a.

«É claro que há prostituição no mundo transexual, mas também há (nesse mesmo mundo) quem compre Givenchy, Louis Vuitton ou Chanel. Por que é que é algo que havemos de esconder?», questiona. «Um homem verdadeiramente masculino pode vestir uma saia, uma mulher repleta de feminilidade pode vestir um fato e continuar mulher», prossegue.

Nesta mesma edição, o ex-diretor criativo da Louis Vuitton, Marc Jacobs, afirmou que «luxo é a liberdade de poder escolher (não ir pelo que nos é imposto ou o que é fácil». Uma realidade que apesar de turva, já vê alguma luz ao fundo do túnel. Modelos transexuais, manequins mulheres que desfilam enquanto homem e vice-versa, traçam o início de um novo olhar sob a androginia, que como nos mostra a história, vai muito além do smoking de Yves Saint Laurent.

Texto: Pureza Fleming