Foi por amor que iniciou esta viagem. Por amar Francisca desde o momento em que soube que existia vida no seu ventre, a mãe, também Francisca, cresceu e tornou-se maior que si mesma. Ultrapassou o medo de ter uma filha com trissomia 21.

«Foi uma gravidez muito angustiada. Felizmente, quer para mim quer para o meu marido, era absolutamente assente que este bebé ia nascer. Já tínhamos dois filhos e uma certeza muito grande do amor que íamos sentir».

Mãe de dois rapazes com três e dois anos, Francisca Prieto tinha 34 quando ficou grávida pela terceira vez. Era uma menina, mas os exames e a ecografia dos três meses revelaram algo mais. Levantaram a suspeita de problemas com a bebé – que a amniocentese, um mês mais tarde, confirmaria: trissomia 21, uma doença genética em que há três cromossomas 21 e que implica um atraso do desenvolvimento, motor e mental.

Ao medo do desconhecido, Francisca respondeu com coragem: «A partir do momento em que se confirmou, eu e o meu marido decidimos estudar a melhor forma de lidar com os danos. E fizemos uma consulta pré-natal no centro de desenvolvimento infantil Diferenças, com o doutor Miguel Palha, que foi absolutamente extraordinário. Foi o nosso primeiro contacto com este mundo».

Ganhou força. «Descobri que, no caso da trissomia, há excelentes técnicos a trabalhar com estas crianças». A descoberta mudaria por completo a sua vida – mas lá iremos.

Conhecer a doença

Os meses de gravidez seguintes passou-os a conhecer a doença ao pormenor. Chegou a ir a congressos sobre o tema. Diz, porém, que foi uma gravidez «triste. Sabemos que aquele bebé não é exactamente como gostaríamos».

Chegados ao momento do nascimento da Francisca, hoje já com 11 anos de vida, «aconteceu um fenómeno engraçado: o dia do nascimento foi de um alívio enorme. Em vez de ser um dia de tristeza, foi ao contrário, um dia de alegria», lembra a mãe.

Francisca tinha passado o “cabo das tormentas”, era o momento da esperança. «Criamos aquele fantasma da deficiência e depois, de repente, nasce uma boneca. Temos ali uma fi lha cor de rosa ao colo. E aquele mito, aquele fantasma todo, acaba por se resumir a uma coisa muito ridícula… Antes da deficiência, das incapacidades, antes de tudo, é o nosso filho que está ao nosso colo».

Francisca sorri muitas vezes ao longo da conversa, enquanto lembra outros tempos. Atenta, sempre por perto, a filha escuta-a, tranquila.

Como tinha descoberto uma «óptima equipa», a bebé foi acompanhada desde os primeiros 15 dias de vida no centro Diferenças, sob o comando de Miguel Palha.

Um traço de personalidade

Ao longo do crescimento, porém, Francisca não ficou numa redoma. Lá em casa, a sua trissomia é encarada como um «traço de personalidade», tanto pelos pais como pelos irmãos. «Às vezes, até me esqueço», diz a mãe. «Por vezes, ela tem comportamentos de uma criança de seis anos mas também tem raciocínios de 11, que é a sua idade». A menina frequenta o quarto ano do ensino regular. Tem amigos e uma vida normal.

«Claro que sempre tive cuidados especiais com a Francisca, levava-a à terapia, fazia aquilo, no fundo, que se faz por qualquer filho quando precisa. Mas tive a sorte de ela não ser o único foco». O que foi mais positivo do que negativo: «Acho que acabou por fazer com que ela crescesse mais despachada».

Entretanto, as idas ao centro Diferenças aproximavam cada vez mais a mãe da instituição. Já então estava afastada da sua carreira. «Antes, trabalhava em publicidade, que exigia muito de mim e, na altura, além de trabalhar muitas horas, tinha que viajar bastante».

Quando pensaram em ter o segundo filho, veio-se embora. «Tínhamos um projecto de família», recorda.

Fazer a diferença

Com as idas frequentes – chegou a ir duas vezes por semana – ao centro, percebeu que «havia técnicos absolutamente extraordinários», que percebiam muito de desenvolvimento de crianças com trissomia, mas «eram muito amadores na angariação de fundos». E essa era uma área em que Francisca podia fazer a diferença. «Eu vinha da publicidade, do marketing. E comecei a trabalhar, a construir projectos de angariação de fundos».

Criou um blogue para vender livros online. Ajudada pela amiga Maria, durante cerca de um ano e meio, vendeu «uma brutalidade de livros».

«Era um blogue com muita personalidade e com muito sentimento». A amiga deixou o projecto. «Só que continuavam a chegar caixotes e caixotes de livros todas as semanas».

Surgiu, há dois anos, a ideia de «um espaço físico onde estes livros estivessem todos à disposição». A Déjà Lu, «uma livraria de livros já lidos», abriu na Cidadela de Cascais, fruto da «boa-disposição, boa vontade, e generosidade de muita gente».

São 50 voluntários, incluindo Francisca. Cem por cento das receitas revertem para o centro Diferenças, dedicado a perturbações do desenvolvimento.

É nesta livraria, rodeada de histórias, que a pequena Francisca passa as suas tardes depois de sair da escola. Ajuda a arrumar os livros, desenha, escreve e, claro, lê. Sempre perto da mãe, que abraça com frequência. Em troca recebe um sorriso e um elogio. «Sabes que és uma miúda muito gira, não sabes?». A menina sorri também.

Uma viagem apenas no início

Depois de ter vencido o medo do desconhecido, a mãe Francisca sente que o mundo não é como antes. Foi a lugares onde nunca sonhou chegar. «Muda a nossa maneira de perspectivar as coisas, de ver o mundo.

Lembro-me de olhar para pais que tinham fi lhos com deficiência e pensar: “Ah, aquela mãe parece que finge que está feliz”. Hoje acho isto tão ridículo porque é evidente que aquela mãe estava felicíssima. São filhos. Portanto, há muita coisa que muda em nós. O nosso coração de alguma maneira fica mais aberto para outras crianças, para outros problemas e para outros adultos com deficiência. Esta miúda já me levou pela mão para sítios a que eu nunca pensei que iria».

E a viagem está apenas no início. Para a fazer, a mãe quer para Francisca «o mesmo que para os outros filhos: felicidade e autonomia, que estão ligadas».

Aproxima-se mais uma etapa. Francisca vai entrar para o quinto ano do ensino regular.

Segura, a menina diz que quando crescer quer ser cozinheira. A mãe está lá para ajudá-la, que a vida é feita de sonhos. E é uma viagem de amor.

Texto de Sónia Balasteiro

Fotografia de Pedro Loureiro

Saiba mais na Revista Saúda