As memórias estão em nós, fazem parte de nós, atrevo-me até a dizer que somos nós, e podemos ou não deixá-las intactas. Se forem boas, guardamo-las numa arca à prova do tempo, só nossa. Caso contrário, tentamos suavizá-las e encaixá-las no nosso quadro de referência psicológico, se forem demasiado penosas.

Cabe-nos a nós separar o trigo do joio, para que uma carga de neuroses não se acumule desnecessariamente. Claro que parece simples, mas não é.

Fez agora um ano, após o nascimento do meu filho, o Pedro Lucas, e desde então foi uma construção saudável de memórias, e de transformação da minha pessoa enquanto ser-mãe-pensante.

Mais do que os aspetos físicos e do crescimento expectável  -  porque toda a mãe gosta de ouvir que o filho tem um “ar saudável” - , para mim, o que mais me pode orgulhar poderá ser uma educação cívica e consciente do seu lugar, do saber estar, e não ser mais um mimado egocêntrico que só pensa em si, ou carregadinho de manias.

Cada vez mais analiso os comportamentos da minha mãe comigo e cada vez mais vejo como pequenas coisas nos moldam e nos ficam cravadas na alma para o bem e para o mal. Sempre que a minha mãe me dizia “ Já viste filha, coitadinho, ou pobrinho, vamos fazer isto ou aquilo por ele”, mas não era com condescendência ou maldade, era  com preocupação genuína e quase até vergonha de não sermos nós a estar naquela situação… E isto todos os dias, não era só no Natal, assombrava em mim um ataque de compaixão e de empatia, de que podia ser muito bem eu, que não sou especial e que, se tenho melhores condições, devo dar graças e não posso passar indiferente, só porque tive “sorte” e o outro não. Este tipo de sentimentos e sensações de que ainda hoje me recordo são o tipo de educação e valores  - creio que suficientes  - para não transformar a criança num verdadeiro sociopata.

Este ano o meu marido, o meu filho e eu fizemos uma viagem em todos os sentidos da palavra. Explorámos novos destinos, fora, mas também dentro de nós. Como boa observadora que sou, e longe de me achar a mãe ou psicóloga, ou muito menos a pessoa perfeita, fiquei perplexa com algumas situações que presenciei, mas são as férias, e por vezes o bom senso  -  ou o que lhe queiram chamar -, fica em casa juntamente com os destroços das malas feitas à pressa… Fomos para o meio do mar, numa cidade flutuante, cheia de casais novos, com filhos e sem filhos, outros mais velhos, amigos, e também solitários, à força ou não.

Eram uma mãe e um filho e, naquelas loucuras do “tudo incluído”, onde se pode consumir, inadvertidamente, o mundo inteiro e mais alguma coisa, um menino para aí dos seus sete anos, no frenético modo de pôr o universo no prato, trouxe um enorme bife. O bife caiu redondo num chão delicado de alcatifa, por onde passavam centenas de pessoas em pura azáfama. E, perante o sucedido, chega perto da mãe e conta-lhe tímida e receosamente o que aconteceu: “…o bife...o bife...” ao que a mãe sem ouvir o resto diz: “Queres bife? Vai buscar mais!” E a criança mais uma vez na tentativa de ser correta, mas sem hipótese com a mãe que tinha: “…o bife…o bife caiu…” ao que a mãe “sabiamente” respondeu: ”Mas não havia lá mais?”.  A criança volta a dar mais uma oportunidade à mãe para a educar: “O bife caiu!!!” E, por último, a mãe remata com toda a sua pseudo - soberania: “Se há mais, vai buscar mais, traz o que quiseres!!!”

Só faltou dizer: “Não me incomodes, vai lá fazer o que te der na cabeça, que eu paguei e esta semana estou-me a marimbar para a tua educação, estou de férias!” Existem coisas das quais não podemos tirar férias, uma delas são os filhos… Até podemos fisicamente não estar perto deles, mas estão sempre no nosso pensamento e são o centro das nossas preocupações.

Resumindo, o bife lá ficou especado bem no meio do chão, pronto a alguém escorregar nele...já nem falo em apanhá-lo de imediato ou de alguma repreensão, mas se estava numa de não fazer mesmo nada, dizia pelo menos ao empregado que o bife estava ali no chão, pronto, não era muito difícil, e claro, uma notaçãozita acerca do não deixar comida espalhada e ir buscar mais só porque se pode, até porque há muita gente a morrer à fome…

Estamos a criar pequenos ditadores, mimados, que podem tudo só porque sim, porque está disponível e pouco têm que o fazer para o conquistar. Isto chocou-me, não sei bem como vou ser, enquanto educadora e auxiliadora de um ser pensante, carregado de medos e sonhos, mas de certeza que isto não quero. E, já agora, quando se pede alguma coisa a alguém que seja com delicadeza, por favor, a pessoa está a ser paga para nos prestar um serviço, não para aturar a nossa falta de educação ou o que lhe queiram chamar.

Mas nem tudo são maus exemplos. Fiquei surpreendida e emocionada com dois casais, um inglês e outro espanhol, com filhos com deficiência, os dois numa cadeira de rodas, “faziam tudo igual aos outros”, com um sorriso na cara, sabe Deus a dificuldade de uma coisa simples como o vestir e transportar diariamente num calor tórrido, e no meio da confusão humana…

O meu filho pesa cerca de 10 kgs e levá-lo à praia ou passear envolve toda uma logística complicada, para além do tempo que se perde e das coisas que ficam por fazer, porque dar o leitinho, a sopa, mudar a fralda, pôr o nosso bebé a dormir, cansam positivamente qualquer pai, mas por gosto e amor. Se nestas situações, em que tudo corre como idealizámos, por vezes já nos queixamos - ingrato ser humano - agora imaginemos aqueles pais que não pediram um filho com deficiência e que teriam a opção de ficar em casa a revoltar-se com o mundo e a serem amargas. Pelo contrário, decidiram não parar de viver, de serem e de fazerem os outros felizes. Depois o amor, isso sim, enternece-me, com que lhes pegavam ao colo, com que os vestiam a preceito e dançavam todos juntos. Como faziam sentir a “normalidade” na diferença. Mas que grande lição de vida para os pais que têm os filhos saudáveis e, mesmo assim, não são felizes, porque ele ainda podia ser melhor do que o filho da vizinha…

Dar valor às Pequenas-Grandes-Fundamentais coisas da vida é mesmo a chave da felicidade.

Boas férias e sejam felizes!