O Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida emitiu um parecer favorável ao acesso à medicina de reprodução por casais de duas mulheres que desejem ser mães biológicas da mesma criança. Uma contribui com ovócitos que, depois de fecundados com espermatozoides de um dador, serão implantados no útero da outra. O parecer foi emitido em janeiro de 2017, mas, de acordo com o jornal Público, apenas vários meses depois foi divulgado pelo Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida (CNPMA).

A exigência vem como resposta a «diversos pedidos de esclarecimento requeridos por centros de PMA [procriação medicamente assistida] e por casais» compostos por duas mulheres depois de a lei ter alargado o «âmbito dos beneficiários das técnicas de procriação medicamente assistida», lê-se no parecer.

Nele, o CNPMA refere que «não está legalmente vedada a possibilidade de atender a um projeto de maternidade biologicamente partilhado por um casal de mulheres através do recurso a fertilização recíproca». «Desde que para tal não haja uma contraindicação clínica que o impossibilite», ressalva, contudo, o documento. A designação é controversa.

O CNPMA designa «fertilização recíproca» ou «partilha biológica da maternidade» mas Mário Sousa, médico especialista em Medicina da Reprodução, não concorda com a utilização do primeiro termo, por o considerar muito restrito, uma vez que o que está em causa é «muito mais do que uma fertilização, dado que implica uma gravidez».

Helena Pereira de Melo, professora de direito da saúde e da bioética, também não concorda com o uso dessa expressão. «O que acontece é que se tem uma mulher que cede um ovócito, que será fertilizado in vitro por um espermatozoide de um dador, e outra em cujo útero vai ser implantado o embrião, ou seja, não há uma fertilização recíproca», sublinha a especialista.

Como tudo acontece

Para que a partilha biológica da maternidade seja possível, recorre-se à fertilização in vitro. Apesar de a «partilha biológica da maternidade» implicar três pessoas (a mulher que cede o ovócito, o dador de esperma e a mulher que recebe o ovócito no útero e prossegue com a gestação), a herança genética da criança será da mãe que doa os ovócitos (50 por cento) e do dador dos espermatozoides (os restantes 50 por cento).

Pois, como explica Mário Sousa, «durante a gravidez, as relações entre a mulher e o feto implicam apenas alterações epigenéticas nos genes, isto é, existe uma mudança da expressão de alguns genes, mas isso não confere a herança genética dessa mulher».  Ainda assim, como ambas as mulheres estão envolvidas biologicamente no processo, as duas serão consideradas mães biológicas.

As condições biológicas a considerar

Para que um casal homossexual feminino possa avançar com este projeto de maternidade, é necessário que ambas as mulheres tenham determinadas condições biológicas e «passem pelo mesmo processo que uma mulher heterossexual infértil passa», explica Mário Sousa. As condições biológicas dos dois elementos do casal devem ser avaliadas com recurso a uma bateria de testes.

Em simultâneo deve ser realizada uma análise genética. Juntos, permitem detetar possíveis infeções ou outras doenças, por exemplo «hepatite B e C, a sífilis ou o VIH», assim como para se apurar em «qual das duas mulheres deve ser feita a estimulação do ovário e quem tem melhor útero para receber o embrião a transferir».

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As diferenças entre a partilha biológica da maternidade e a barriga de aluguer

A partilha biológica da maternidade e a gestação de substituição (barriga de aluguer) são quadros distintos, como esclarece Mário Sousa. «São situações completamente diferentes, uma vez que na gestação de substituição temos os ovócitos e o espermatozoide do casal, recorrendo-se a uma recetora que empresta o útero para levar a gestação até ao fim», refere.

Também aos olhos da lei existem diferenças, a mais importante, refere Helena Pereira de Melo, professora de Direito da Saúde, é que na gestação de substituição a «segunda mulher [a que suporta a gravidez] entrega a criança aos pais sociais, renunciando aos poderes e deveres próprios da maternidade», o que não acontece na «partilha biológica da maternidade».

Os condicionantes legais a ter em conta

No contexto do princípio da Constituição Portuguesa de que «ninguém pode ser discriminado em relação à sua orientação sexual», lembra Helena Pereira de Melo, «a lei da PMA vem permitir o acesso às técnicas de PMA a casais independentemente do seu estado civil, orientação sexual e diagnóstico de infertilidade». Porém, esse acesso tem limitações.

«Uma delas é que, no Serviço Nacional de Saúde, não é permitido que duas mulheres do mesmo casal se submetam em simultâneo a técnicas de PMA», diz. Na partilha biológica da maternidade, existe uma mulher a quem vão ser colhidos ovócitos e outra que vai ser preparada biologicamente para receber o embrião. «Nestes casos, deve considerar-se um acesso sucessivo às técnicas de PMA ou simultâneo?», questiona.

Outra condicionante legal é o facto de, em relação a casais do mesmo sexo ou mulheres sem parceiro, a lei privilegiar o recurso a inseminação artificial (que consiste na colocação de uma amostra de sémen, preparada previamente no laboratório, no interior do útero da mulher). Esta técnica não é, contudo, usada na «partilha biológica da maternidade» porque, nesse caso, apenas uma das mulheres estaria biologicamente envolvida na gravidez.

A questão aos olhos da ética

Na opinião de Rui Nunes, presidente da Associação Portuguesa de Bioética, «não seria adequado que não se permitisse este tipo de modelo, dado o contexto social que existe hoje em Portugal». Segundo o especialista, o parecer vem contribuir para o equilíbrio conjugal do casal homossexual feminino, uma vez que ambas as mães contribuem biologicamente para o nascimento da criança.

O que não acontece nos casos de inseminação artificial, em que, «em termos biológicos, a criança é mais filha de uma do que de outra, o que para alguns casais pode trazer problemas». Por outro lado, em caso de recurso a inseminação artificial, a lei não permite o que acontece na partilha biológica da maternidade. A criança ter no seu cartão de cidadão o nome de ambas as mães.

Deste modo, este projeto de maternidade pode trazer vantagens para a criança, «nomeadamente em termos sucessórios, dado que passa a ser vista como herdeira legitimária de ambas as mulheres», assim como a usufruir de todos os outros direitos que a lei portuguesa determina quando «uma pessoa é juridicamente reconhecida como progenitora de uma criança», esclarece Helena Pereira de Melo.

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Um tema controverso que divide opiniões

Rui Nunes, professor catedrático da Universidade do Porto, reconhece que pode haver alguma controvérsia em termos de ética médica, uma vez que se «encaram as técnicas de PMA como um mecanismo subsidiário, ou seja, como tratamento de uma doença (a infertilidade), quando não é isso que acontece no quadro da partilha biológica da maternidade, em que não está em causa uma patologia».

Para Rui Nunes, este pressuposto «não pode ser argumento para que um médico ou hospital recuse o procedimento» a estes casais. Um médico que não concorde com este modelo de maternidade pode evocar «objeção de consciência», não sendo «obrigado a agir contra os seus princípios», mas «o sistema não deve prejudicar nenhum casal que legitimamente veja este modelo como uma opção reprodutiva», diz.

E os casais homossexuais masculinos?

A partilha biológica da maternidade é mais um passo para casais compostos por duas mulheres e, segundo Rui Nunes, presidente da Associação Portuguesa de Bioética, não será surpresa se a questão legal subjacente (duas mulheres que, por esta via, se tornam ambas mães da criança, não só em termos biológicos mas também em termos legais) for levantada por casais homossexuais masculinos.

«Se a Constituição da República refere que ninguém pode ser discriminado em razão da orientação sexual, teremos de continuar a ser coerentes» e será preciso encontrar soluções para estes casos, eventualmente, através do reconhecimento legal da existência de dois pais (homens) «em caso de recurso a barriga de aluguer», realça o especialista.

A técnica utilizada

Para que haja partilha biológica da maternidade, a única técnica de procriação medicamente assistida possível é a fertilização in vitro, que se desenrola em vários passos:

- 1º passo

A mulher é estimulada para produzir ovócitos.

- 2º passo

Os ovócitos são recolhidos a partir dos ovários, para serem fecundados com espermatozoides em meio laboratorial para criar embriões.

- 3º passo

Transferem-se embriões para o útero que vai recebê-los.

- 4º passo

Passados 12 dias, é feito um doseamento de sangue para confirmação de gravidez.

Texto: Catarina Caldeira Baguinho com Helena Pereira de Melo (professora de direito da saúde e da bioética e subdiretora da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa), Mário Sousa (professor catedrático, médico especialista em medicina social e familiar com subespecialidade em medicina da reprodução, no Departamento de Microscopia, no Laboratório de Biologia Celular do Instituto de Ciências Biomédicas de Abel Salazar da Universidade do Porto) e Rui Nunes (professor catedrático e diretor do Serviço de Bioética e Ética Médica da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto e presidente da Associação Portuguesa de Bioética)