FOTO: BabyDi - Fotografia de Recém-nascidos by Diana Vasconcellos e Sá

Quem é a enfermeira Cristina Flores?

Sou uma mulher com garra e com força. E sei que isso vem muito das minhas raízes, dos princípios e dos valores que os meus pais me transmitiram. Vem também da família onde eu fui criada. Não baixamos os braços. Todo o meu núcleo familiar era o de uma família de trabalhadores, de gente que tinha de lutar para ter. E é uma família grande. Aprendemos desde cedo a partilhar. Vivíamos sem consumismos. A melhor roupa usava-se só ao domingo. Houve sempre um quanto-baste que me fez crescer muito, que me deu força para lutar e para conquistar.

É esse espírito familiar que a motiva todos os dias?

Adoro ser mãe. E começo por mãe porque tenho três filhas espetaculares com 28, 27 e 22 anos. Adoro ser mulher e adoro ser enfermeira. Gosto imenso do que faço. Concluí o segundo ano de Medicina e não segui esse curso porque não quis. Adoro o contacto cara-a-cara, o tocar e o ajudar. E isso tem a ver com a empatia. Uma enfermeira que não tem empatia fica muito aquém da profissão. É preciso saber ouvir e ajudar. Porque apoiar uma jovem, uma mulher, é apoiar uma comunidade, um país.

Só não vou atrás de um carro do INEM porque sou crescida e tenho um bocadinho de vergonha

Porque escolheu esta área?

Eu não escolhi esta área, esta área é que veio ter comigo. Terminei o curso de Enfermagem em 1982. Nesse ano iniciei funções na Unidade de Urgência Cirúrgica do Hospital de São José, onde tinha realizado o último estágio do curso. Eu adoro urgência. Dá-me adrenalina… Só não vou atrás de um carro do INEM porque sou crescida e tenho um bocadinho de vergonha. Porque eu ia e parava para ajudar. A minha alcunha no São José era a “Cristina reanimas”, porque eu adorava a área de reanimação. Isto é a parte boa e a parte má, porque não é fácil fazer a catarse de tudo isto. É muito pesado do ponto de vista psicológico. É isso que me leva a concorrer para os Cuidados de Saúde Primários, mas só quando tenho a terceira filha, em 1995. Não entrei logo, só em 1997 é que iniciei funções nessa área.

O que a marcou nesses 18 anos na Urgência no Hospital de São José?

A evacuação de queimados da Escola Secundária do Cartaxo. Houve um incêndio no laboratório de química da escola e havia dezenas de feridos. A evacuação das pessoas de um avião holandês que se incendiou no aeroporto de Faro. Ainda hoje troco mensagens e e-mails com uma passageira, mãe de um menino de 4 anos. Ela vinha ter com o marido a Portugal, e trazia o filho, mas ficou com as mãos e braços totalmente queimados. Não conseguia pegar no filho. Enquanto ela desceu do avião para ser socorrida, eu fiquei com o menino no meu colo, que tinha apenas uma zona lateral da face queimada, tentando acalmá-lo perante a situação fragilizada da mãe. Ficámos com uma ligação espetacular.

Uma enfermeira salva vidas, mas a sua profissão nem sempre é valorizada. Quais são as maiores dificuldades no seu dia-a-dia de trabalho?

Sobretudo a grande carência de pessoal. Eu posso dizer que quando fui trabalhar para o Centro de Saúde eramos 17 enfermeiros. Hoje somos 9 e dois estão de saída. Há muitos utentes, sobretudo idosos, e as pessoas recorrem cada vez mais aos serviços de saúde. Temos um parque informático muito velho, quase da “época do Marquês de Pombal”. Aliás, os fios até já fazem canudos. Parecem os cabelos do Marquês de Pombal. De resto não me posso queixar. As pessoas são fascinantes e todos os colegas se esforçam diariamente para dar e fazer o seu melhor.

Como é que foi a adaptação aos cuidados de saúde maternos e da mulher?

Inicialmente, não queria… Mas com o tempo fui-me apaixonando por essa área. E foram as adolescentes que me fascinaram. Chegavam com dúvidas, grávidas, menores, sem conhecimento dos pais, com relações desprotegidas e os riscos que isso acarreta. Fez-se um gabinete de partilha e aconselhamento excelente, o trabalho no terreno foi feito com o projeto “ saúde vai à escola” – de saúde escolar, desenvolvido em escolas secundárias. Depois o lado social começou a cativar-me. Há situações muito difíceis. Há muitas pessoas a precisar de ajuda, a baixa autoestima dos jovens, o bullying, os consumos, enfim…

Pode dar um exemplo?

Não vou falar em nomes. Vou falar da situação atual de um casal com três filhos que vive numa casa térrea que só tem um quarto e que fica num beco da Ajuda, em Lisboa. Há baratas e percevejos a passearem pelas paredes e pelo chão. Ao fundo, frente à porta dormem duas crianças num sofá e há um frigorífico fechado com correntes. Há tanta fome que quando o frigorífico está aberto as crianças comem tudo o que há. Esta é uma das famílias que temos apoiado num dos projetos em que estou envolvida. Há um grupo de mães que vai lá dar abastecimento de mercearia há já três anos. Estas mães fizeram o curso comigo e ao conhecer a realidade deste trabalho hoje integram esta rede informal de interajuda de casais.

Os casais têm de estar sempre preparados para os riscos de ter um bebé. Riscos porquê? Porque o casal fica muitas vezes em privação do sono, em situações de stress, e existe o risco do casal entrar em rotura, por dificuldade de gerir toda esta nova realidade

Quantos bebés é que já ajudou a nascer?

Penso ter ultrapassado os 3600. Normalmente paro para contar quando há gémeos ou trigémeos (risos).

É uma espécie de segunda mãe?

Pode dizer-se que sim. Procuro ser um porto seguro, onde podem sempre recorrer. Estou sempre, 24 horas por dia, disponível para ajudar quem precisa. Tenho dois telemóveis que estão sempre ligados para qualquer dúvida urgente.

Quando se trata de bebés, as pessoas não devem ter vergonha de fazer perguntas, mesmo que pareçam elementares. Concorda?

Claro. Todas as dúvidas são válidas. Eu fui percebendo com estes cursos de preparação para o parto e de parentalidade que o envolvimento do pai é fundamental. A mulher está fragilizada, debilitada, com a parte hormonal alterada. O papel do pai é preponderante. Estas mulheres e estes pais têm de ser ensinados. Ninguém nasce ensinado. Os bebés não nascem com livros de instruções, não têm botões para desligar o som, nem os umbigos são portas de USB. Os casais têm de estar sempre preparados para os riscos de ter um bebé. Riscos porquê? Porque o casal fica muitas vezes em privação do sono, em situações de stress, e existe o risco do casal entrar em rotura, por dificuldade de gerir toda esta nova realidade.

É esse lado que também dá a conhecer nos seus cursos de pré e pós-parto?

Os objetivos do curso passam por capacitar o pai e a mãe para poderem esclarecer todas as dúvidas prementes com a gravidez e o parto, mas também com tudo o que daí vai advir.  Dúvidas comuns, coisas normais, mas que muitas vezes em situação de privação de sono não é permitido aos pais perceber de imediato. É preciso fornecer capacitação e competências aos pais para que consigam cuidar dos bebés e vivam a parentalidade de forma plena, saudável, responsável e feliz.

Qual é a duração dos cursos?

Os cursos devem começar à 25ª ou 26ª semana de gravidez até ao momento do parto, com uma aula virada para a mãe e outra para o casal. Depois do parto, as aulas mantêm-se até às 10 ou 12 semanas. Nos cursos as grávidas e as mães de recém-nascidos trocam experiências. No curso existe uma enorme mais-valia. Eu tenho bebés de verdade. Trabalho nesta área há 13 anos e conheço e tenho casos de amizade que se mantêm desde então… São amigas de barriga.

Esta relação é para sempre?

Sim. Tenho mães que vêm a Portugal só para fazer os cursos e ter os bebés. Tenho uma mãe angolana com quatro filhos que veio a Portugal fazer o curso para todos os filhos. E não é a única. Tenho uma em Moçambique, no Qatar, outra na Gronelândia e outra na Noruega. Depois os casais em Lisboa também ficam amigos de barriga para a vida.

Porque é que estes cursos são importantes?

Sobretudo para a desmistificação do parto. Há muitas mães com medo do parto, com dúvidas. Sobre cuidados aos recém-nascidos, o que é ter um bebé nos braços, muitas vezes sem a ajuda dos avós. Eu também faço formação para avós para que eles possam atualizar as informações sobre o cuidado aos bebés, da prevenção da morte súbita, da limpeza do umbigo, dos olhos, dos ouvidos… Os pais precisam de saber estas coisas todas. Ser mãe, ser pai não é fácil. É um desafio ser real, verdadeiro, chamar as coisas pelos nomes e vivencia-las com bebés de verdade é sempre uma mais-valia. O facto de os pais levarem os recém-nascidos ao curso, para avaliação de peso, banhos, cuidados ao coto umbilical ajuda os novos participantes, a entender as dificuldades por que todos passam.

É fácil educar uma criança?

(Pausa) Não é fácil. Os desafios constantes a que o mundo os expõe obriga-nos a nós, pais, a estar alerta. É preciso controlar o que os nossos filhos fazem. Por outro lado estamos na era do consumismo. Há um constante assédio para comprar isto e aquilo. Há que ser prático e comprar apenas o necessário. O mesmo se passa com os bebés. Há imenso marketing à volta dos produtos para bebé, mas não nos podemos esquecer que uma panela com água a ferver também esteriliza um biberão. Não precisamos de comprar um dos 50 mil esterilizadores que existem à venda. Há que ter cuidado com os tablets e com os monitores, porque esses aparelhos não favorecem o desenvolvimento da linguagem dos bebés e das crianças. É preciso brincar com eles de verdade e ter tempo de qualidade para o seu filho.

E é verdade que sabe as vacinas que todas as “suas crianças” devem fazer?

É verdade. As minhas colegas chamam-me “memofante”. Eu não vejo as pessoas durante algum tempo, começo a fazer contas às idades e por vezes envio sms às mães para que não se esqueçam de vacinar os filhos. Faz parte de mim ( risos) .

Sente que tem um coração XXL?

Isso é o que as pessoas dizem. Eu não sei. Eu só tenho como lema e missão de vida “fazer o bem sem olhar a quem”, seja um bebé, uma mãe ou um idoso.

Como foi ser condecorada pelo Presidente da República pelo seu papel nos cuidados de saúde materna?

Foi muito gratificante para mim e para a classe dos enfermeiros. Fiquei super feliz. Recebi nesse dia um telefonema da bastonária da Ordem dos Enfermeiros a felicitar-me pelo prémio. É muito importante para nós. A classe dos enfermeiros tem sido muito prejudicada nos últimos anos. Receber a Comenda por “ Ordem de Mérito Civil” do Senhor Presidente da República Aníbal Cavaco Silva foi um grande orgulho pessoal e profissional. Foi muito bom sentir esse reconhecimento do meu trabalho e de tantos outros enfermeiros que o fazem por esse país fora.

Os cursos da enfermeira Cristina Flores são pós-laborais e as inscrições podem ser feitas no projeto “Corações XXL “ da associação “Corações com Coroa” http://www.coracoescomcoroa.org/

Pode consultar o curso online aqui: Curso Pré e Pós Parto