Valdemar Marques, de 51 anos, foi parar ao curso de alfabetização da Junta de Freguesia de Odivelas com o sonho de reaprender a ler e escrever. Veio de Angola em 1974, com a vaga de retornados. Tinha 10 anos e a 4.ª classe. Em Portugal estudou até ao 8.º ano, de forma um pouco errática. Cumpriu o serviço militar, fez carreira no exército. Alguns problemas na vida afastaram-no dos livros e passaram uma borracha no que já sabia.

Ir às aulas em Odivelas foi uma demonstração de força de vontade. Valdemar fazia grande parte do percurso a pé: “Eu vivo na parte baixa da Serra da Luz e tinha que subir a serra, que é uma rampa bastante íngreme, até ao Bairro Padre Cruz [Carnide]. Só depois é que apanhava o autocarro”, recorda o aluno, que garante que as aulas compensavam o sacrifício diário: “Nunca faltava, nem quando estava um temporal. E não me custava”, recorda.

Os funcionários dos serviços de atendimento da junta foram os primeiros a aperceber-se dos casos de analfabetismo: De vez em quando apareciam pessoas a pedir ajuda para ler as cartas ou para preencher formulários.

Eram adultos, na sua maioria em idade ativa, que não sabiam ler nem escrever em português. Muitos eram imigrantes mas também havia portugueses que não tinham tido oportunidade de estudar na devida altura e, por vergonha, continuaram sempre longe da escola.

A autarquia decidiu, por isso, avançar com um curso de alfabetização. Transformou um espaço vazio do polidesportivo local em sala de aula e pediu ajuda à Associação de Jardins-Escolas João de Deus.

As aulas foram um sucesso. E revelaram que o analfabetismo não era uma realidade exclusiva de quem vive isolado em aldeias do interior no país. Mostraram, pelo contrário, que existe na cidade, no bairro e até na porta ao lado.

“Às vezes, isto passa-nos um bocado despercebido”, admite o presidente da Junta de Odivelas, Nuno Gaudêncio.

Apesar dos anúncios afixados na junta a anunciar novos cursos, as aulas ainda não recomeçaram, porque o modelo está a ser repensado.

Resultado: Há já uma lista de espera de 30 adultos. Uns querem aprender a ler para fugir ao estigma de viver à margem da sociedade. Outros querem apenas conseguir compreender os recados que os professores dos seus filhos mandam para casa.

Nos cursos anteriores a maior parte das carteiras foi sempre ocupada por mulheres. Chegavam após um dia de trabalho, depois de terem ido buscar os filhos à escola e com a consciência de estar a adiar as tarefas domésticas que ninguém iria fazer por elas. “Organizavam-se para tomar conta das crianças, deixavam-nas a brincar umas com as outras, mas nunca desistiram do curso”, sublinha Vanessa Porto, responsável pela área dos assuntos sociais da junta.

Havia também portugueses, na sua maioria mulheres, mais velhas, que queriam deixar de depender dos outros para ler uma carta do correio ou compreender uma promoção do supermercado.

Em Portugal, o analfabetismo continua a atingir mais o sexo feminino, apesar de a diferença entre sexos se estar a esbater. A maior diferenciação é a idade, já que a grande maioria é idosa.

Dos cerca de 500 mil analfabetos que vivem em Portugal, existem quase 30 mil em idade ativa, segundo dados do Instituto Nacional de Estatística (INE). E nem todos vivem em aldeias isoladas do interior.

As ruelas das zonas históricas de Lisboa ainda escondem algum analfabetismo envergonhado. A professora da Associação Renovar a Mouraria, Anabela Laranjeira, conheceu alguns casos.

Este ano, a turma de Anabela Laranjeira tem apenas alunos imigrantes, que querem aprender o suficiente para conseguir responder às perguntas do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras. Mas pela sua sala já passaram portugueses, alguns ainda jovens, que nunca tinham frequentado a escola.

“É sempre um choque perceber que pessoas tão jovens ainda não conseguem ter acesso àquilo que é o mais básico num país europeu, que é ler e escrever. Acho que eles têm essa consciência, […] de que se não forem eles a insistir, a virem, não há preocupação”, conta a jovem professora.

Para Anabela Laranjeira estes cursos são necessários e por isso não desiste, apesar de agora trabalhar de forma voluntária por falta de verbas.

Isto porque o Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP) deixou de financiar aquele Programa de Competência Básica (PCB), uma formação em noções elementares de leitura, escrita, cálculo e novas tecnologias.

Ensinar uma turma que tenha entre 12 a 15 alunos inscritos no PCB custa pouco mais de mil euros por curso, segundo dados avançados à Lusa pelo IEFP.

Na Associação Renovar a Mouraria essa verba desapareceu. “O trabalho que estamos a fazer de forma voluntária não responde às necessidades”, alerta, explicando que era preciso garantir o transporte dos alunos que moram mais longe e que, sem dinheiro para as deslocações, acabam por desistir das aulas.

Nos últimos seis anos, os PCB foram frequentados por 37.721 adultos.

Mas o presidente da Associação Nacional de Profissionais de Educação e Formação de Adultos (ANPEFA), Armando Loureiro, diz que a maioria dos alunos não consegue aprender o suficiente, porque são formações muito curtas que não estão adaptadas às suas necessidades.

O próprio IEFP reconhece que os PCB não têm o objetivo de alfabetizar.

A ANPEFA acusa o Ministério da Educação (ME) de não ter uma oferta dirigida a estas pessoas – “a formação de adultos e cursos de alfabetização são praticamente inexistentes” - e de tratar esta área como “um parente pobre do sistema de ensino”.

Questionado sobre estas críticas, o ME diz apenas que “no âmbito do Plano Nacional de Reformas o Governo está a preparar medidas que flexibilizam os PCB para garantir que deles beneficiam mais pessoas”.