No ano de 2012, os serviços de saúde admitiram um aumento de notificações de casos de maus tratos a crianças ao Instituto de Medicina Legal, o que salientou a atenção redobrada dos profissionais de saúde a potenciais sinais de alarme.


Teresa Magalhães, professora da Faculdade de Medicina do Porto e médica-legista do Instituto de Medicina Legal e Ciências Forense chama a atenção: “O silêncio é maior dificuldade para gerir uma situação de abuso”.


Criança maltratada. Vítima de abuso. Uma das primeiras barreiras está em definir onde começam e acabam estas designações.

 

“De uma forma genérica, uma criança maltratada corresponde a uma situação em que a mesma é sujeita a práticas por comissão ou por missão”, esclarece Teresa Magalhães, do Instituto de Medicina Legal e Ciências Forense.

 

“Ambas as situações, quer seja por comissão – abuso físico, psicológico, sexual ou outro – ou missão (negligência), colocam em causa o harmonioso desenvolvimento da criança, a saúde física e mental (atual e futura), bem como o seu bem-estar, dignidade e direitos”.

 

Aliás, se atendermos estritamente ao conteúdo do artigo 152ºA do Código Penal Português, o termo maltrato é usado na epígrafe deste artigo para identificar casos de comissão e missão, mas quando ocorram em meio institucional ou num contexto de dever de prestação de cuidados.

 

Dificuldade na definição


Durante a sessão de esclarecimento sob o tema “O papel dos profissionais de saúde na deteção de maus-tratos em crianças e jovens”, levada a cabo pela Comissão de Proteção de Crianças e Jovens de Arouca em junho de 2014, Teresa Magalhães reforçou a importância vital dos profissionais de saúde estarem devidamente preparados para detetar possíveis sinais de alarme, que possam significar que a criança está a ser vítima de abuso.

 

“Não existem dúvidas que determinadas situação são claramente abuso. Mutilação genital, escravatura, violência exagerada, exploração laboral e abusos sexuais são alguns dos exemplos onde não existe sombra de incerteza”, refere a especialista. “Os casos mais fáceis de detetar são sempre os mais violentos e graves. O problema reside nas situações dúbias e não óbvias, daí ser muito importante que o profissional de saúde esteja atento a todos os sinais. A linha que separa o abuso pode ser difícil de definir. E para intervir, é necessário fazer essa definição.”

 

Esta dificuldade de deteção prende-se com a violência escondida ou lesões disfarçadas, o que pode ser uma barreira para os profissionais de saúde detetarem com clareza um abuso ou maltrato. No entanto, existem formas e questões que podem conduzir à verdade. “É preciso detetar, diagnosticar, tratar e prevenir, sendo a deteção fundamental – e é preciso saber detetar”, alerta Teresa Magalhães. “A inadequação de explicação ou ausência da mesma (mecanismo do traumatismo e data da produção do mesmo), as lesões em locais impróprios para acidente, lesões figuradas ou em diferentes estados de evolução, bem como o atraso na procura de cuidados de saúde são sinais de alerta para um eventual caso de maus tratos. No caso das lesões terem a marca e forma de um objeto nítido, as desconfianças aumentam consideravelmente”, conclui a especialista.

 

 

A importância da intervenção

 

Nos casos de maus tratos a crianças e jovens, a sinalização e a deteção é o primeiro passo para acabar com esta doença, definição que Teresa Magalhães insiste que tem de ser utilizada nos casos de abuso. “ É necessário encarar o abuso e os maus tratos como um problema de saúde, até porque estas situações podem causar danos cerebrais irreversíveis. Tal como muitas doenças, é contagioso e até mortal”, salienta a especialista do Instituto de Medicina Legal e Ciências Forense.


E após a deteção do abuso, como se deve proceder? Teresa Magalhães explica que "existe um sistema integrado que opera da seguinte forma: em primeiro lugar, existe a suspeita e seguinte deteção, segue-se o tratamento de urgência e, de seguida, a comunicação às autoridades competentes (sinalização/denúncia). As denúncias do caso são feitas ao Ministério Público (recebido e elaborado pelo perito) e de seguida surge a sinalização de serviços de apoio à vítima", explica.

 

"No entanto, é de salientar que existe uma corrida contra o tempo nos casos de abuso sexuais, já que é necessária fazer uma análise para recolha de provas (exames urgentes, para evitar a perda de prova médico-legal e o diagnóstico que apoie as medidas a implementar)", salienta.

 

Apesar da gravidade destas situações, existem muitos casos de abuso que até ao dia de hoje continuam sem ser sinalizados. O desconhecimento, tanto da lei como dos indicadores de suspeita, o respeito pela vontade da vítima, que pode não querer acusar o agressor, a não confiança da mesma na resposta ao nível de proteção e no sistema judicial, o que pode causar represálias e novas agressões, bem como as questões culturais (ou seja, entender certos comportamentos como não abusivos, entender a intervenção como intromissão numa questão familiar, receio de envolvimento em eventuais questões judiciais) são alguns dos motivos que levam a que muitos abusos não sejam relatados às autoridades.

 

Consequências no futuro

 

Os danos dos abusos a crianças e jovens não são apenas físicos, mas também psi-cológicos. “Os abusos causam consequências para toda a vida. Podem ser situações ultrapassadas, mas o número de experiências adversas vai conduzir ao que somos em adultos”, esclarece Teresa Magalhães.

 

“As consequências na vida adulta podem ser várias, desde alcoolismo, depressão, tentativas de suicídio, doenças de fígado, diabetes, hipertensão arterial, obesidade mórbida até ao início da atividade sexual muito cedo, uso de drogas, múltiplos parceiros sexuais e, em certos casos, gravidez adolescente.”

 

Maus tratos “aperfeiçoados”

 

Em Portugal, para além de existirem mais casos notificados a partir de 2012, a gravidade dos mesmos também aumentou. “O ato de maltratar tem-se vindo a aperfeiçoar. É mais requintado e perverso, com marcas mais difíceis de identificar e lidar para os próprios técnicos”, referiu Rute Santos, membro do núcleo hospitalar de apoio a crianças e jovens em risco no Hospital Dona Estefânea, em declarações à comunicação social no âmbito do Congresso de Serviço Social do Centro Hospitalar de Lisboa Central.

 

Teresa Magalhães recorda um caso de crueldade e frieza extrema de uma mãe que, para conseguir maltratar a filha pequena, “aproveitou o facto de a criança sofrer de psoríase e queimou a menina com um cigarro no braço onde já existiam várias lesões provenientes da doença, para que as marcas do abuso passassem mais despercebidas.” São situações como esta que complicam o papel dos profissionais de saúde na deteção de maus tratos, mas para as quais os mesmos têm de estar preparados.


Por Catarina da Eira Ballestero