Há dias, disseram-me que um bom psicólogo é aquele que tem a capacidade de ouvir as mais reais atrocidades sem fazer qualquer juízo de valor. Considerando real a teoria que diz que todos temos um pouco de “psicólogo de trazer por casa”, questiono-me até que ponto é que, nos momentos em que conhecemos as histórias de terceiros, conseguimos realmente ser imparciais.

(A minha opinião? Não conseguimos.)

Tenho uma amiga cuja vida não tem sido fácil. A malfadada crise financeira atingiu a sua bolsa e a daqueles que a poderiam empregar, e os últimos anos têm sido passados numa luta que em nada se coaduna com esta pessoa: corajosa, determinada, inteligente e empenhada. Uma mulher que, de repente, se viu obrigada a cortar despesas básicas, a inventar ocupações que se convertessem em refeições diárias na mesa, a viver com muito menos do que aquilo que precisa.

Esta minha amiga, tal como tantos outros milhares de portugueses, resolveu que está na hora de desistir do nosso país. De procurar um outro destino que ignore esta idade redonda (e aparentemente hedionda) que são os 40, que valorize a sua vasta experiência e polivalência profissional, que ofereça uma qualidade de vida que lhe permita viver e não simplesmente sobreviver. Que a tire deste desgaste e desta frustração que é não saber como se vai pagar as contas que ignoram a possibilidade de ser liquidadas.

Em histórias semelhantes, surge quase sempre a mesma reação: a de encorajamento, a de valorização de quem tem força para tomar tal medida. Os emigrantes (por opção ou obrigação) são quase os novos heróis da atual história do nosso país, parecendo deixar para trás dezenas, centenas ou milhares de pessoas que lhes invejam o arrojo e a sorte.

Mas com a minha amiga não é assim. Porque ela é mãe de duas crianças pequenas, que vai ter de deixar na terra que as viu nascer, fruto de circunstâncias familiares e financeiras que não lhe permitem levar com ela as pessoas que mais ama. E, provavelmente, as pessoas que mais vão sentir a sua falta.

Neste caso, a minha amiga não é corajosa. É antes uma má mãe. Uma pessoa egoísta e desligada que optou por abandonar os filhos para tentar a sua sorte a milhares de quilómetros de distância. Que passará meses a fio a viver longe deles, num país onde irá desenvolver novas rotinas, novas oportunidades, e que lhe permitirá apenas, e durante muito tempo, telefonemas que serão a única forma de acompanhar a vida, a evolução e as novas histórias dos seus filhos. Coisas que, lá dizem os juízos de valor, só uma má mãe faria.

Mas há uma coisa que as pessoas não percebem: a profundidade e a complexidade de cada decisão que tomamos. Pequenos detalhes que os outros não sabem, não percebem nem se esforçam por compreender. Coisas tão simples como o limite a que uma pessoa terá de chegar para ponderar ficar um ano longe dos filhos. Para, durante todo este tempo, não os deixar mais de manhã na escola. Para não cozinhar o jantar de que eles tanto gostam, para não os cheirar depois de cada banho, para não adormecer apenas depois de confirmar que eles dormem tranquilamente. Para não os abraçar, beijar, acarinhar e sentir durante uma quantidade de tempo que é suficiente para que, da próxima vez que se encontrem, os seus pequenos rostos já apresentem feições mais adultas.

Esta mãe, tal como muitas outras, não deixa Portugal sem eles. Deixa, em vez disso, o país por eles. Vai perder um ano de vida, esgotando-se em trabalhos que lhe permitam acumular o suficiente para, ao regressar, começar uma nova realidade. Com os filhos. Permitindo-lhes tudo aquilo que, de há muito tempo para cá, não lhes consegue oferecer. Não são brinquedos, nem as viagens, nem as idas às inúmeras atividades de lazer. É a comida. É a roupa que substitui a que já não lhes serve. São os médicos e os medicamentos. É a casa com um teto minimamente humano para os acolher.

Mas isto os juízos de valor não consideram. É muito mais fácil avaliar e condenar à lupa de uma bitola altamente parcial e desajustada. É mais reconfortante, até.

Para a minha amiga, bem como para todas as mães que se afastam dos filhos para lhes oferecer uma vida melhor, eu tiro humildemente o meu chapéu. E relembro que a vossa casa – aquela que vive dentro do vosso peito e que esconde todas as vossas emoções – não tem de ter portas abertas aos vizinhos curiosos e emocionalmente malformados. Esses, continuarão a julgar e, pior que isso, a espalhar nas casas limítrofes rumores que não fazem mais que proteger, temporariamente, os seus próprios telhados de vidro.

Porque vocês são, bem vistas as coisas, mães e mulheres-coragem. De quem os vossos filhos se orgulharão, hoje e sempre, verdadeira e desmesuradamente.

Alda Benamor