Quando eu era uma rapariga jovem, solteira e ingénua, incomodava-me com as crianças supostamente mal-educadas que faziam birras, respondiam torto e choravam como se o mundo fosse acabar. Revirava os olhos quando as via a correr por entre as mesas de restaurantes, lançava um olhar de incómodo às que se atiravam para o chão nos corredores de supermercado, e deitava as mãos à cabeça sempre que alguma – qual herege! – se enrolava numa mancha de puxões de cabelos e arranhadelas com outra da sua idade. E, então, soltava sempre a enciclopédica profecia:

- Havia de ser meu filho!

Gosto muito das inconveniências da vida. Sinceramente. Acho piada quando ela nos tira o tapete debaixo dos pés e nos dá um par de estalos, daqueles de nos deixar a cara e a alma marcadas para todo o sempre. Assim como se nos dissesse: “se achas mesmo que consegues caminhar sobre a água, experimenta aqui no Triangulo das Bermudas”.

Quando a minha primeira filha nasceu, eu acreditei firmemente que nunca iria tolerar uma criança com quaisquer indícios de má-educação. Tinha milhentos planos para a sua edução, para as regras e para os princípios que lhe ia incutir. E mais: eu sabia que ia ser rigorosíssima nesta minha tarefa.

E fui, até nascer a minha segunda filha, coisa que se deu quando a primeira tinha apenas 16 meses (pelo que, como se pode perceber, também não tive muito tempo para exercer os meus planos educacionais). Quando me vi com duas crianças pequenas a meu cargo, resolvi abrir algumas exceções: a maior podia ver mais um bocadinho de televisão, para eu conseguir adormecer a bebé; a mais pequena ia imediatamente para a minha cama quando despertasse de noite, para não acordar a irmã; elas podiam comer um doce de vez em quando, para a minha paciência não torrar às primeiras súplicas.

Mas, apesar destas exceções, eu continuava a acreditar firmemente na ditadura hitleriana que tinha delineado para a minha aventura pela maternidade.

Digamos que os meus planos duraram três anos. Quando os gémeos nasceram, percebi que eu não tinha vida, nem tempo, nem métodos e muito menos paciência para levantar a tal espada de ferro educacional. Acreditem que quatro crianças pequenas em casa equivalem, muitas vezes, a um sindicato a acenar em fúria as suas bandeiras contestatárias em direção ao patrono abusador. Enquanto a mais velha suplicava para ver televisão, a outra batia-lhe furiosamente apenas porque sim, enquanto os bebés choravam como se o mundo fosse acabar só porque a chucha lhes havia caído da boca. E, então, lá ficava eu a olhar para aquele cenário dantesco, percebendo a impotência dos meus apenas dois braços e do meu único cérebro exausto, até encontrar a solução ideal: chocolates. Ou aquele programa de televisão em que um palhaço gordo e com ar ofensivo ensinava as crianças a soletrar o ABC.

E era naqueles momentos, em que eles enchiam a cara e as roupas de chocolate derretido ou ficavam estupefactos a olhar para o gordo de nariz vermelho, que eu suspirava de novo pelos merecidos cinco minutos de descanso a que eu sabia que tinha direito.
Valeu-me a sorte, o destino ou as súplicas que fiz ao universo o fato de eles nunca terem feito birras excessivas e de nunca, mas nunca, se terem atirado para o chão no meio de um ataque de fúria. Também consigo ir jantar fora, ao cinema e ao teatro com os quatro sem que eu sinta necessidade de os enfiar num buraco.

Eu gosto de regras. Basta dizer que sou do signo virgem e que tenho ascendente também em virgem para que até os menos entendidos na matéria percebam que sou uma mulher da ordem e da organização. Isto aliado ao fato de eu ser filha única - e de, logo, nunca ter havido grande confusão ou barulho na minha casa de origem - faz com que algumas coisas me deixem ainda de cabelos em pé: as migalhas espalhadas pelo chão (e eu sempre de aspirador em riste…), as camas mal feitas por aquelas mãos pequenas (e eu sempre a puxar mais um bocadinho as orelhas dos lençóis…), a casa de banho inundada depois de eles tomarem banho (e eu sempre na dança da esfregona…), os gritos que ecoam de manhã à noite nesta casa, seja porque eles estão alegremente a brincar ou furiosamente a lutar (e eu sempre a suplicar por silêncio…). Enfim, uma panóplia de exceções a tudo aquilo que eu, ingenuamente, tinha planeado para a minha vida de mãe.

Mas foram precisamente os meus filhos que me ensinaram a apreciar (algumas) exceções às regras. E que me provaram que estes tiros na ordem até podem ser benéficos e muito agradáveis. Como os dias em que decidimos jantar sentados no sofá, a ver aquele programa de televisão de que tanto gostamos. Ou os outros em que permito que a loiça espere mais uma hora para ser lavada só para ficarmos aninhados mais um bocado. Ou até aquelas noites em que cedo a mais meia hora de prolongamento para os deitar. Isto já para não falar das vezes em que os mais novos se pegam e eu procuro invocar todos os anjos antes de intervir, lembrando-me que ainda não ninguém chorou nem há hematomas a latejar naqueles corpos pequenos.

Pois, o destino pregou-me efetivamente a maior partida de todas. E ensinou-me a melhor de todas as lições: a não criar regras em terrenos que não conheço. E que são altamente movediços.

Ainda assim, não abdico da lista de tarefas estrategicamente colada na porta do frigorífico. Aquela que os obriga a responsabilidades rotativas e diárias e que me faz soltar o maior dos sorrisos (sarcástico e manifestamente sádico) sempre que os ouço dizer: “oh mãe, hoje é o meu dia de limpar a casa de banho… tenho mesmo de lavar a sanita?”.

Alda Benamor

 

Licenciada e consultora em Comunicação Empresarial, é mãe de quatro crianças. Os filhos dizem-lhe que é a melhor do mundo, mas que não conhecem mais nenhuma mãe que seja assim “tão extrovertida”. Ela reconhece o papel, assumindo que isso afasta, por enquanto, potenciais genros e noras que queiram aparecer para jantar.