Ruy de Carvalho dispensa apresentações. Nenhuma, aliás, faria jus a tamanho vulto da Cultura portuguesa. Perpassa gerações e reúne consenso.

O Fama ao Minuto esteve em casa do ator e a conversa fluiu sem dar pelo tempo passar.

Da família, às crenças religiosas e ao tema da vida depois da morte, fique com a segunda parte desta entrevista.

Atrás de um grande homem está uma grande mulher…

[A Ruth] já partiu há alguns anos, mas tenho uma filha que é uma grande mulher. Tenho uma filha que está a substituir a mãe, hoje é a minha patroa, como eu digo na brincadeira [risos].

A Ruth acompanhava-o? Viu todos os seus trabalhos?

Via sempre os meus trabalhos mas deixava-me trabalhar sozinho. Aliás, eu não sou fácil quando estou a estudar um papel. Às vezes refugio-me muito em mim e procuro muito estar comigo. A minha mulher foi bailarina, portanto, não fazia mal. Ela percebia isso. Ainda por cima era formada em História e Filosofia e também me ajudava muito. Tinha conhecimento, sabia ir a um arquivo procurar aquilo que eu precisava e ajudava-me muito. Fomos casados 53 anos e namorámos nove. Entretanto, ela partiu há nove anos.

A sua mulher era uma boa espectadora, uma boa crítica?

Era uma boa crítica e tinha uma boa crítica. Sabia fazer crítica. Primeiro porque tinha dançado, sabia o que era o espetáculo, e depois tinha conhecimento, não era analfabeta. Não sabia só ler. É preciso saber ler as ideias, fundamentalmente. Quando estamos a ler temos de perceber o que estamos a ler, e isso é o que às vezes falta. Como é que sabemos que um escritor é muito bom? É pelo prazer que temos a lê-lo. Nós temos muitos assim.

Como foram os tempos de namoro?

A família da minha mulher não queria que ela se casasse comigo por causa de eu ser ator. Foi um bocadinho difícil, por isso demorou nove anos. Eu tinha de provar à família da minha mulher que valia a pena casar comigo. Se eu não tivesse uma vida preparada, fundamentada com base, a família dizia: ‘Não que horror. Uma menina de família casar com um malandro daqueles’.

A Ruth era uma boa crítica e tinha uma boa crítica. Sabia fazer crítica

Tiveram de pensar que eu não era mesmo um malandro, e acabaram por saber isso. Eram muito meus amigos. Os meus grandes inimigos passaram a ser os meus grandes amigos e meus grandes admiradores.

Quais as melhores recordações que ficam deste grande amor?

Os meus filhos e tudo aquilo que eles têm dado. Os meus netos e a minha bisneta que está em Macau. Tenho um neto que é piloto aviador, outro que é engenheiro geólogo e tenho outro que é meu colega. Tenho um filho que é ator e uma filha que é jornalista.

Como se sente ao ver nascer um bisneto?

Quase que a vi nascer porque ela estava cá. Está em Macau, mas nasceu cá. Tem nove meses. Já é uma andarilha, já quer andar sozinha.

É mais uma riqueza que nós vamos tendo. É uma sensação boa. Normalmente não digo bisavô, digo avô.

Sente-se feliz por ver o seu filho e o seu neto a seguirem as suas pisadas? Tiveram o seu incentivo?

É a prova de que valeu a pena. Eles é que escolheram. Quando eles disseram que queriam eu achei muito bem.

Costuma dizer que vai reencontrar a Ruth. Quando a vir, o que lhe vai dizer?

O que é que ela me vai dizer a mim. Acredito que há qualquer coisa para além da nossa vida. Quando nós morremos esfriamos, há qualquer coisa de energia que sai de nós, e essa energia não morre. Vai-se embora, sai de nós, e nós apodrecemos. Este corpo que teve essa energia apodrece.

Os meus grandes inimigos passaram a ser os meus grandes admiradoresPara onde é que foi essa energia? Será que volta? Será que por isso é que há génios, pessoas extraordinárias que vêm de corpos de pessoas muito importantes? Porque é que o Mozart escrevia sinfonias aos seis anos?

Há qualquer coisa de regresso. Há muita gente que acredita no voltar. Esta energia vai para um sítio, volta outra vez e vem dar energia a outro que nasce. Às vezes dizem: ‘Olha nasceu um bebé quando morreu a avó’. E essa bebé às vezes é igual à avó. Mas estamos a especular sobre uma coisa.

Agora, na ‘Canção de Lisboa’, fiz de professor de anatomia. Eu sou só o professor que faz perguntas ao menino, mas ele explica o que é e como é que é a morte. O estado em que ficamos quando morremos. Portanto, não podemos ficar por cá se não apodrecermos e cheiramos mal, porque perdemos a tal energia que se chama vida.

Quais foram as últimas palavras que disse à sua mulher?

Acho que não lhe disse em voz alta, disse: 'Não te vás embora'. Mas ela queria ir. Ela estava a sofrer muito. Foram muitos anos de sofrimento e morreu com um vírus de hospital. Teve uma septicemia e morreu.

A sua cadela também fazia parte da família. Alguma vez pensou em adotar um cão depois da morte da Naná?

Agora já não. Tenho os da minha filha e os do meu filho. A minha filha tem dois e o meu filho tem dois.

A Naná viveu 16 anos, eu vi-a nascer. Tenho várias coisas com ela, [como] uma caneca onde eu bebo o leite.

Do que mais sente falta depois de a Naná partir?

Estar a trabalhar e estar a fazer-lhe festas. Ela estava aqui ao meu lado e eu estava a fazer-lhe festinhas. [Sentava-se numa almofada] e encostava-se a mim. Pedia para ir para a cama quando já estava cansada de eu estar a estudar. Era uma companhia extraordinária.

Infelizmente já passou por momentos muito difíceis na sua vida. Qual é o primeiro pensamento quando se descobre que tem cancro?

Vou tratá-lo. Vou tratar-me, vou curar-me, vou ser melhor. Foi o que eu pensei.

Gosto muito de correr o mundo para conhecer o meu paísComo é que se consegue ter força para enfrentar esta luta?

Quando uma pessoa recebe uma notícia dessas sabe que morrer é o seu destino e vai lutar para que não seja. Será este o meu destino, é morrer com cancro? Não era. Tinha de lutar para o curar. Não podia desistir de viver por causa de um cancro.

O Ruy é um homem com muita garra, alguma vez pensou em desistir?

Não, desistir não. Descansar sim. Fazer pausa, viajar, correr o mundo. Gosto muito de correr o mundo para conhecer o meu país. Quando vou lá fora tenho muitas saudades de Portugal. É um país muito bonito com boa gente que às vezes não sabe ser boa gente.

É um homem de fé?

Sou. Não sou frequentador mas sou um cristão. Acho que Cristo foi um homem extraordinário e um Deus, pela qualidade dele. Ele não precisava de ressuscitar. Foi um exemplo tão grande para os homens que não precisava de ser Deus, mas é Deus.

*Pode ler a primeira parte desta entrevista aqui.