Catarina Avelar, que faz de avó Miquinhas na série da TVI ‘Massa Fresca’, é atriz de quem Manuel Luís Goucha "muito gosta" e por quem tem uma "verdadeira estima".

Por isso, o apresentador recordou alguns momentos passados com Catarina. "Recordo com agrado um cruzeiro que fizemos há muitos anos no Paquete Funchal, terá sido porventura a minha primeira ida a Roma e andámos os dois o tempo todo a ver igrejas e basílicas, qual delas a mais sumptuosa. É que independentemente da fé (ou da falta dela) de cada um, partilhamos a mesma paixão pela sua representação artística", começou por dizer no seu blogue.

O apresentador encontrou alguns dos exemplares do Século Ilustrado, uma revista que durante décadas foi como que um complemento semanal do jornal O Século. "Criada em 1933 e extinta em 1989 destinava-se, sobretudo, o público feminino, através das notícias de atualidade, estórias de figuras públicas, reportagens e anúncios publicitários, tudo passado evidentemente pelo crivo da censura, pelo que não seriam permitidos quaisquer arroubos que pudessem pôr em causa o regime". Uma publicação que faz parte das memórias da infância de Goucha.

E, num exemplar de 1957, o apresentador da TVI encontrou "uma curiosa matéria sobre Catarina Avelar", onde a própria fala de si e de "como se apaixonou pela arte de representar".

Na altura, a atriz tinha 18 anos e Manuel fez questão de partilhar esse mesmo texto com os seus seguidores.

Leia na íntegra:

"Nasci em Lisboa, nomeia 9 de Janeiro de 1939, mas a minha terra é o Tramagal, aldeia do concelho de Abrantes, onde de pequenina fui criada e tenho a casa familiar.

Lembro-me muito bem da minha infância e embora fosse triste e medrosa e tivesse chorado muita vez recordo sempre com saudade esse tempo.

Como era mais nova que meus irmãos, era sempre tratada um pouco como princesinha, no meio modesto em que vivíamos. A esse carinho dos meus correspondi e correspondo com ternura, embora não seja de grandes manifestações e até às vezes parece fria e orgulhosa. Também dizem que em pequena era reservada, estranha e caprichosa, e contam muitas coisas a esse respeito.

Lembro-me, por exemplo, de um desses factos que faziam de mim uma menina má e estranha. Pedi água. Deram-ma. E eu, depois de beber, atirei o copo ao chão, fazendo-o em estilhas. Ralharam-me e quiseram saber porque tinham feito aquilo. Respondi tranquilamente: porque o copo era feio.

A minha família nunca entendeu isto e ficaria zangada se eu lhes dissesse que talvez entenda e venha desse tempo a vontade que sinto de atirar ao chão e quebrar tudo o que acho feio e injusto na vida.

A grande paixão da minha infância foram as bonecas … Essa paixão projetou-se e definiu-se numa ternura imensa pelas crianças; ternura que é ao mesmo tempo respeito e pena, pena por mim porque deixei de ser criança e pena por elas, que um dia deixarão também de o ser.

Depois da escola primária, os meus pais, embora com sacrifício, resolveram que eu fosse estudar. Eu, ainda não sei bem porquê, queria ser médica. Estive um ano num colégio em Coimbra, em casa do meu padrinho, e no ano seguinte matriculei-me num colégio, no Rossio ao Sul do Tejo, a localidade mais próxima do Tramagal, onde podia continuar a estudar. O diretor do colégio era muito severo e ganhei logo um medo terrível. Tenho a impressão de que embirrou comigo e talvez tivesse razão porque sinto que pelo meu acanhamento e feitio calado, pareço às vezes tola e pior do que me julgo. O certo é que detestava andar no colégio. Uma vez na véspera de uma peregrinação a Fátima, uma colega disse que ia por mim e por ela pedir licença ao diretor para faltarmos às aulas de tarde. Assim poderia ir com a minha mãe na peregrinação. Não sei se ela pediu se não. Sei que quando cheguei a casa, me esperava à porta meu pai, que me deu uma tareia porque o diretor tinha telefonado para minha casa a dizer que eu tinha fugido do colégio.

Isto fez-me tanta impressão e ganhei tanto terror à ideia de voltar à presença do diretor que nunca mais deixei de chorar e pedir que não me obrigassem a voltar ao colégio. Fizeram-me a vontade e seguiram-se dois anos de escuridão na minha vida… Nem me quero lembrar disso.

Tive de adaptar-me à vida caseira da aldeia, dias inteiros fazendo coisas de que não gostava ou não fazendo nada, o que era ainda pior.

Uma vez levaram-me a Abrantes a uma festa da rádio e ouvi recitar a actrizinha (neste tempo) Maria Dulce, uns versos de José Régio. Um mundo novo abriu-se, então, para mim. Nessa altura era uma rapariguinha apagada a que ninguém dava importância.

Para festas e representações só convidavam a minha irmã mais velha. Assim, havendo uma récita no teatro, pediram-lhe que ela dissesse uns versos. Eu comecei com entusiasmo doido a ensinar-lhe a minha poesia. Meus tios que assistiam aos ensaios, entenderam que devia ser eu a dizê-la na festa, e assim aconteceu.

Entrei no palco a tremer de aflição, mas de repente esqueci-me de tudo…gostaram tanto que foram falar de mim à Sra D. Maria Bastos Duarte Ferreira, mulher de um dos donos da fábrica do Tramagal.

Esta senhora que gosta muito de teatro, tinha até feito no sótão da casa dela um teatro com camarins, caixa de ponto e tudo quanto é preciso e onde com os filhos e amigas destes representavam peças que ela própria escrevia. Pois esta senhora ouviu-me recitar no Teatro do Tramagal e logo me convidou para tomar parte num récita que estava a organizar para a férias, porque os filhos, agora já crescidos, estavam a estudar em Lisboa e só nas férias podiam participar nos espetáculos. Desta vez não foi no sótão, mas no teatro da terra, a favor das crianças pobres, que representámos uma peça da Sra.D.Maria, que se chamava ” Anda um fantasma no colégio” – eu e o seu filho Carlos fazíamos dois dos principais papéis da peça: Cricri e Laranjinha, dois meninos endiabrados. Agradei tanto como atriz, que a Sra. D. Maria ficou muito minha amiga, passando eu a frequentar a sua casa.

E um dia disse que se eu quisesse frequentar o Conservatório para tirar o curso de teatro, me trazia para a sua casa de Lisboa e me pagaria os estudos. Foi uma conversa muito importante e de que nunca me esqueço. Fez-me ver as coisas boas e más que podiam acontecer e a responsabilidade que tomava tirando-me da casa dos meus pais. Prometi-lhe que faria tudo para ser sempre a sua “Laranjinha”-é assim que ela sempre me trata – rapariga simples de que a sua varinha mágica de fada benfazeja queria fazer mais alguma coisa.

Prometi e espero cumprir.

Depois seguem-se os anos no Conservatório, os três anos da praxe, fazendo exame em Julho deste ano.

Na escolha da peça de exame não demorámos. Não podendo ser um ato da peça “L’ annonce fait à Marie” de Claudel – que a sra. D. Maria sonhava traduzir para ma ver representar – eu adorei que fosse a “Benilde ou a Virgem Mãe”. Ainda outra vez José Régio, nos meus primeiros passos…

Na hora do exame atacou-me o terror de sempre, tremia como varas verdes e desatei a chorar mesmo na altura de entrar em cena. Foi ainda a Sra.D.Maria que me secou as lágrimas e me disse palavras de esperança. Mas como sempre acontece, em cena esqueci tudo e só vivi o meu papel, possuída por uma força estranha a que tenho de obedecer.

A Sra. D. Amélia e o Sr.Robles assistiram ao meu exame, deram-me os parabéns e isso foi tão bom ou melhor que os dezoito valores.

E sempre que falava no meu futuro era o Teatro Nacional e a sua companhia, o meu maior sonho.

Lembrando estes três anos de estudo sinto que foram muito bons e deles hei-de sentir sempre saudades. Vivi numa cada muito alegre, de gente nova e culta, onde todos tínhamos liberdade para expor as nossas opiniões, éramos aconselhadas e sempre incitadas a amar a beleza e o espírito.

Depois vieram as férias e o problema do meu futuro.

Tinha já feito parte do grupo Pró-Arte e declamado pela província, durante dois anos, versos dos nossos melhores poetas, tomando parte em alguns programas de televisão mas… o teatro era o meu ideal e além disso aspirava a um lugar certo para poder ajudar os meus.

Outra vez uma fada benfazeja parece ter tocado o meu destino. Em Outubro a Sra.D.Ameélia mandou-me chamar e estou desde então na sua companhia. Têm-me tratado não como empresária mas como boa mestra cheia de paciência e bondade. Os colegas, velhos e novos, a mesma coisa. Estou cheia de gratidão e ternura pelo que têm feito por mim. Sinto que só a este ambiente de simpatia devo conseguir vencer o medo e a timidez do meu temperamento; se não fosse assim tratada e os meus primeiros passos e erros não fossem socorridos pela bondade dos meus empresários e companheiras, teria fugido do teatro.

Mas sinto também que nunca poderei livrar-me da angústia, da timidez e da reserva que fazem parte da minha pessoa, que hei-de ter sempre saudades de não sei quê… que hei-de sempre lembrar-me da mina infância, das minhas bonecas, das pratas e dos cromos dos meus livros de histórias… mas também queria que pudessem imaginar o que se passa agora na minha cabeça… os projetos e as esperanças … e como estou feliz!".