O seu primeiro disco foi considerado o melhor álbum português de 2013 pelas revistas Blitz, Time Out, jornais Expresso e Público. Venceu, por unanimidade, o Prémio José Afonso 2014, atribuído pela Câmara Municipal da Amadora. Em maio do mesmo ano, surpreendeu-se com o Globo de Ouro para Melhor Intérprete Individual. Miguel Esteves Cardoso antecipou-se e sobre ela escreveu, há um ano, «sei e sinto, com a mesma força, que Gisela João é a grande fadista do século XXI (…) Aconteceu um milagre, ouça». E nós ouvimos...

Prémios, tantos elogios... Sente-se esmagada pelo reconhecimento ou é simplesmente bom?

Deixa-me muito feliz, mas já me aconteceu estar a receber um prémio e pensar «O que vou fazer a seguir?» porque se as pessoas me dão todos estes créditos é sinal que confiam em mim. Não me sinto esmagada, mas não menorizo. Choro com os meus prémios, fico feliz, mas a vida não é feita disso. As palmas e as luzes dos concertos são algo maravilhoso mas, depois, vou para casa, estou com os meus gatos [Mimi e José], abro o correio e estão lá contas para pagar. Sou uma pessoa muito normal.

De onde vem essa capacidade de distanciamento, essa lucidez?

Eu também sou público e vejo nos outros o que não quero para mim. Sempre me irritaram vedetas e eu não sou vedeta, sou a mesma Gisela. Venho de uma família de classe média-baixa em que toda a gente teve de trabalhar muito, nunca tivemos luxos. Na década de 1990, com as portas da União Europeia abertas para o resto do mundo, com mão de obra mais barata, muitas empresas no norte fecharam.

E lembro-me de ver pessoas que viviam muito bem a, de um dia para o outro, precisarem dos outros que tinham pouco. Hoje, recebo elogios, mas sei que pode acontecer, no próximo disco, já não quererem fazer entrevistas ou tirar fotografias comigo. O que fica é a família, os amigos, as pessoas que vamos conhecendo e que gostam de nós…

É a mais velha de sete irmãos, cuidava deles e tinha pouco tempo para si. Que ferramentas ganhou com isso?

Desde criança, sempre tive de ser grata por tudo. Davam-nos roupa e ficava feliz. Tenho seis irmãos e a partilha faz parte da minha vida, desde sempre. O estar atenta ao outro que está ao teu lado, o nunca ter nada que é só teu, porque tu também não és só tua e também não és ninguém sozinha. E cozinho desde os oito anos. Se me perguntarem se acho que canto bem, não faço ideia, eu gosto é de cantar, mas encho a minha boca para dizer que cozinho muito bem. Dá-me muito prazer pôr as pessoas com vontade de sorrir e a comer.

Como é que os seus irmãos reagem a este percurso?

Ficam loucos, vibram e estão super orgulhosos, mas são low profile. Vem da nossa educação.

Transforma-se quando canta. Que valores do fado são os valores da Gisela?

A seriedade. Para podermos brincar com as situações temos de as levar a sério. Sei que, às vezes, pareço uma miúda de dez anos, mas eu saí de casa e trabalho desde os 18 anos. A vida é tão pesada que tenho por princípio que, mesmo que esteja triste com alguma coisa, não é assim que se levam as coisas para a frente. O fado fala de vida e a vida tem de tudo.

Cantar poemas mais pesados também faz parte da minha vida, da Gisela que tem de se sentar em reuniões. Há um exercício que faço há uns anos. Desligo o telemóvel, sento-me a pensar no que fiz bem, no que fiz menos bem, no que tenho de fazer melhor, no que quero e no que não quero. Gosto de parar para perceber o porquê das coisas, para onde quero ir…

Há intensidade quando canta fado. É também assim em outras áreas da vida?

Sou intensa, sim. Se estou feliz, estou muito feliz. Se é para chorar, vamos chorar, mas tudo de uma vez. E obrigo as minhas amigas a isso também. [sorri] Apareço em casa delas com um bolo e digo «Vamos chorar as duas, conheço as melhores músicas e filmes para isso… E amanhã vais acordar e pensar, acabou, não tenho tempo para isto»…

Diz que, quando canta, a sua maior preocupação é a letra, porque se vai emprestar a ela, levá-la para momentos da sua vida. É terapêutico?

Sim, mas, às vezes, também é muito pesado, sobretudo quando se está com algum problema. O amor é a base de tudo na vida e o fado fala de vidas, de relações humanas. É também, por isso, que gosto de relativizar as situações, de ir de braços abertos e de sorriso na cara porque lido diariamente com um lado pesado.

A crítica e o público estão certos que atingiu um grau de excelência. Como se aguça o talento, independentemente da área em que se trabalha?

Nunca fazendo nada com o propósito de agradar aos outros. Tens de ser honesto contigo mesmo. Se assim for, não há ninguém que te possa apontar o dedo, mas se estás a fazer as coisas para agradar a alguns, para mostrar que consegues, há outros a quem não vais agradar porque te esqueceste deles. É importante não desistirmos, nem nos acharmos inferiores. E não gosto de caixinhas, do costuma-se fazer assim, do «Sou fadista, tenho de me vestir de preto e de xaile nas costas»... Não é isso que nos define, nem é por isso que vais fazer um melhor trabalho, é com muita dedicação e trabalho.

E não gosta de colocar as expetativas muito altas…

Detesto. A queda é maior. E não me refiro à que os outros assistem, falo da queda interior que é pensarmos «Não consegui». Coloco objetivos para a minha vida, sim, mas não passam por ser a fadista com mais discos vendidos. A minha avó disse-me um dia «Se Deus te põe no mundo é porque há lugar para ti». A vida, depois, é o que tu fazes, o que fazem contigo e o que deixas que façam contigo.

«Música boa faz bem à saúde», escreveu no seu Facebook. O que ouve quando está mais stressada e triste?

Ponho música logo que acordo e ouço muita coisa diferente. Nem consigo dizer qual é o género musical de que gosto mais. Se estou stressada, ouço música eletrónica, trance, techno e vou correr. Se estou triste, prefiro Steve Reich, Chopin, Stravinsky, Dvo?ák ou Mahler. Adoro ouvir Billie Holiday, Ella Fitzgerald, Chet Baker, Sinatra e Elvis. Combato a preguiça com Abba e com samba.

Escreveu também «Coisas lindas fazem bem à saúde». Que coisas lindas?

Trabalhos como os [de bordado] da Joana Caetano, que mostram quem ela é e que não precisam de ser explicados. Detesto ir a uma exposição ou ao teatro e ter de dizer o que encontrei ali da mensagem do artista. Tenho de o sentir. Quando as pessoas estão mais preocupadas em comentar a mensagem não assimilam metade do que viram. Não estão disponíveis para a receberem. No meu disco, por exemplo, há uma faixa só instrumental [«Canto de Rua» de Carlos Paredes] porque as pessoas precisam dessa calma.

Em que sentido?

Quis obrigá-las a ouvir apenas os instrumentos porque ali também está uma história. A que tu quiseres, a que a tua memória te quiser dar naquele momento! Já viste o poder disto? É lindo! De repente, estás à espera que alguém cante um poema e ele não acontece. Quando canto um poema, posso levar-te para qualquer história da tua vida, mas quando só tens música viajas sozinha. Se te sentares a ouvir, entregue de corpo e alma, essa música tem um desenho. Se fosse uma pincelada de cor era inicialmente escura até ficar muito clara e depois voltar a escurecer. É como uma paleta do dia, que são os nossos estados emocionais.

Já tem consciência de que só precisamos de a ouvir cantar uma vez para gostar de si e de a querermos voltar a ouvir, mesmo que não gostemos de fado?

Não… [sorri] Ai, que bom ouvir isso! [comove-se] Eu lido mal com os elogios, mas se gostam de me ouvir fico muito feliz. Eu gosto é de cantar!

8 factos que não sabe sobre Gisela João:

1 - Tem um blogue adormecido que quer reanimar.

2 - As suas primeiras madeixas californianas foram feitas por ela, ainda não eram moda.

3 - De manhã, vai ao ginásio, corre ou faz abdominais. «Faz muito bem à cabeça», assegura.

4 - Quando acaba um concerto, corre para junto do público. Adora ver a cara das pessoas.

5 - Relaxa a ouvir música do hipnoterapeuta Paul McKenna.

6 - É gulosa mas não come muitos hidratos de carbono e faz refeições leves à noite.

7 - Gosta de contemplar e de bordar no Jardim da Estrela em Lisboa.

8 - Tem tatuados nos braços dois lemas de vida, «Don’t forget to play» e «Viva a felicidade».

Texto: Nazaré Tocha