Depois das fotografias feitas por Tracy Richardson (com produção da revista CARAS), Nélson Mateus e Adelaide de Sousa conversaram com Paula, João, Henrique e Ruy de Carvalho. O resultado foi uma conversa alegre, descontraída, mas nem por isso menos importante...

Ruy, fale-nos da sua família...

Ruy de Carvalho:  Eu sou Ruy Alberto Rebelo Pires de Carvalho, Pires de Carvalho é da parte do pai, Rebelo é da parte da mãe, Calado Rebelo. Tenho também uma bisavó que era de origem escocesa, de nome Stuart...

E o que é que nos pode contar sobre os seus avós?

Ruy: O meu avô creio que dirigia as finanças em Vila Real, Trás os Montes. Eu sou de uma família transmontana, e tenho lá uma rua agora com o meu nome e é uma coisa que me honra muito. O tio do meu pai foi primeiro fundador de um jornal republicano no tempo da monarquia, chamava-se “O Trás os Montes”…

O seu tio era republicano, então?

Ruy:  Sim, e o meu pai, a família do meu avô, e era tudo gente daquela zona ali. A minha avó Cristina foi casada com um senhor chamado Rebelo, que foi dono duma propriedade enorme que houve em Angola e que depois se transformou num sítio chamado «Bom Jesus do Kwanza». Uma coisa engraçada: esse meu avô Rebelo, que está agora no jazigo número 11 do cemitério de Luanda, recebeu o príncipe Luís Filipe quando ele fez uma viagem a Angola e mandou fazer um barco com rodas para ele poder subir o rio. Tinha uma casa perto da Senhora da Muxima, e esse meu avô como calculam era rico... Era um homem rico, mas depois já não nos calhou nada, porque quando nós fomos à procura do que restava já não valia a pena procurar!

E da parte da sua mãe, o que nos conta?

Ruy: A minha mãe era pianista (filha do meu avô Rebelo) e não quis ir para África porque o pai não mandou ir a mãe, só a filha, e ela disse que sem a mãe não ia! Portanto o meu avô ficou lá sozinho e a minha avó foi lá morrer, passados muitos anos em 1929 ou 30. Faleceu nos “Muxazes”, a 16 km de Vila Luso. Está enterrada a grande profundidade por causa das feras - agora já não há tantas porque comeram-nas! A minha mãe era pianista, foi aluna de um grande mestre de piano chamado Vianna da Mota. Ele disse-lhe uma coisa engraçada: «se a menina casar não será uma grande pianista».

E porque é que ele disse isso?

Ruy: Porque iria estar dividida entre o piano e a família... Um pianista tem de correr mundo, ele achava que ela podia correr mundo, que tinha esse potencial. A minha mãe, se fosse viva, teria cento e tal anos, já tinha 43 anos quando eu nasci.

A sua mãe então era pianista e o seu pai era militar?

Ruy: O meu pai era oficial do exército, era! Fez parte da guarda real deste senhor que temos atrás de nós (fotografia na Pousada Cidadela de Cascais), o rei D. Carlos. Pertencia à comitiva dele, e fez serviço aqui na Cidadela. E de vez em quando estava preso porque era monárquico.

E foi várias vezes preso, não foi?

Ruy: Exato, 37 vezes, antigamente os homens prendiam-se uns aos outros mesmo quando eram democratas.

E que recordações é que tanto o João como a Paula, têm destes avós que o vossopai estava agora a recordar?

João: Recordações, muitas... O pai do meu pai, o meu avô João de quem eu herdei o nome, era um homenzarrão muito grande, tinha mais de 1 metro e 90. Não herdei o tamanho, só o bigode!  O meu avô era uma pessoa extraordinária. Sei que ele era um pouco doido quando era jovem e não só, mas teve sempre aquela figura do grande avô.

A minha avó era um doce, as minhas duas avós. O avô materno não cheguei a conhecer bem, eu tinha  um ano quando ele morreu. As minhas duas avós, tanto a paterna como a materna, eram artistas. A minha avó paterna era uma pianista e concertista extraordinária. A minha outra avó não se dedicou tão seriamente às artes, mas era uma pintora a carvão espantosa, tenho várias obras feitas por ela. Antigamente as senhoras procuravam outras coisas, não eram só os bordados. Ela era uma menina de família madeirense e portanto tinha polivalências, bordava maravilhosamente, até a ouro sabia bordar…

Então em termos de geografia de Portugal temos Trás os Montes, Madeira…

João: Madeira da parte da minha mãe, e depois Lisboa. Eu lembro-me de passear com o meu avô, é uma imagem que guardo, ele sempre muito grande…

Ruy: Ele tem a espada do avô em casa!

Tem? A espada?

João:  A espada, as medalhas e os galões que eram do meu avô, sou eu que tenho e passam de geração em geração. Creio que essas são as coisas que nós temos de ir conservando, para sabermos que existe tradição nas nossas famílias. É uma base muito importante para a nossa vida, e se nós nos esquecemos disso, é um descalabro.

E da sua parte, Paula…?

Paula: Uma das minhas tarefas agora é unir, juntar a família, é o que eu tenho feito nos últimos tempos. Mas relativamente aos avós, o João esqueceu-se de falar na bisavó. Nós ainda conhecemos a avó da minha mãe, morreu quando eu tinha uns 9 ou 10 anos. Tinha quatro filhos, todos tinham cabelos brancos e ela não tinha mais de sete cabelos brancos quando morreu. As minhas avós, conheci-as muito bem. Quando a mãe da minha mãe morreu eu já era adulta, só não era ainda casada nem tinha filhos, mas já era uma mulher. Eram extraordinárias as duas: lembro-me vagamente de estar a brincar ao pé da minha bisavó, mas ela depois entrou em coma… O meu avô morreu tinha eu 3 anos, lembro-me de estar sentada na cama com ele a fazer casinhas com as cartas e com os maços de tabaco vazios. Ele fazia coleção porque nunca fumava o mesmo cigarro, eram sempre de uma marca diferente. A última memória que tenho do meu avô é do hospital militar na Estrela: lembro-me de andar a correr ali pelo hospital e depois lembro-me de ele ter desaparecido. Disseram-me que ele tinha partido, mas eu não percebi na altura... Tenho uma grande saudade desse avô. Os outros conheci e dávamo-nos muito bem. Sou parecida com a mãe do meu pai, que era neta de escoceses…

De onde vem o nome Stuart...?

Paula: A tal Stuart. A minha avó era muito baixinha como eu, mas tinha o cabelo muito preto que eu não tenho. Fomos buscar quase tudo ao lado da minha avó. Ninguém ficou grande…

Ruy: Mas ficaste com os olhos bonitos…

Paula: Ninguém ficou alto como o meu avô.

Henrique: Fiquei eu, enorme!(risos)

O Henrique não se lembra dos bisavós...

Ruy: Mas da avó Rute, lembra-se!

Paula: E ele ainda tem uma avó do lado paterno.

Henrique: Tenho o meu avô do lado materno e uma avó do lado paterno.

Paula: Mas conheceu ainda os bisavós.

Henrique: Conheci os bisavós do lado do meu pai.

Paula: Eras muito pequenino…

Tem algumas recordações ou não?

Henrique: Não!

Paula: Mas dos avós sim, do avô Armando que era oficial da Marinha...aliás tem também a espada desse avô, creio.

No caso da avó Rute, são memórias muito presentes porque até há poucos anos esteve viva e chegaram a viver na mesma casa. Que imagem mais forte tem da sua avó Rute?

Ruy: Quando se zangava era gira!

Henrique: Quando se zangava…

Paula: Atirava o baralho de cartas!

Porquê?

Henrique: Atirava tudo o que tinha à frente dela…Agarrava nas coisas e atirava!

Ruy: Era temperamental!

Henrique: Mas nunca acertava…

Era de temperamento sanguíneo, era?

Henrique: Era, se se zangava, era!

Ruy: Era uma extraordinária pessoa, mas tinha mau génio! Foram 53 anos de mau génio, que eu fui casado 53 anos!

Sei que era daquelas pessoas que não gostava de não ter razão.

Ruy: Não gostava nada de não ter razão! O marido dela também não, são do mesmo signo portanto eram iguais, não gostam de não ter razão.

Paula: Mas as cartas pelo ar é a cena mais deliciosa que existe.

João: Nós casámos todos com pessoas assim!

Escolheram todos esse tipo de parceiro?

João: Sim, que a minha também tinha as orelhas arrebitadas!

Ruy: A minha mulher era formada em História e Filosofia e era bailarina também. Por isso nos conhecemos no Conservatório.

Mas antes disso, independentemente de se terem passado mais de 100 anos, o que são os valores que o Ruy bebeu dessa família ancestral e que continuam a ser os valores que perpassam para a família que o  Ruy tem agora? Para o Henrique, por exemplo?

Ruy: Uma grande honestidade, uma forma de estar na vida com muito carácter… Eu vou contar uma história engraçada de família: O meu pai veio da guerra com 29, 30 anos, era capitão na altura e chegou a Vila Real todo bonito, todo fardado. Chegou à estação de Vila Real, o meu avô recebeu-o, abraçaram-se, felicitaram-se, o meu pai puxou da cigarreira acendeu um cigarro, o meu avô deu-lhe um estalo na estação, o meu pai apanhou o comboio para Chaves e foi-se embora. Estiveram zangados uns anitos, era uma família muito respeitável e muito feudalista, mas com uma grande união. Os meus tios, cada um foi uma coisa, um foi da polícia, outro foi alfaiate e o outro foi oficial do exército…

João: Uns eram republicanos, outros eram monárquicos.

Uma grande mistura!

Ruy: Mas havia uma democracia na família, gostávamos uns dos outros mesmo com políticas diferentes, que é uma coisa que não acontece agora. Agora odeiam-se pessoas, que é um disparate completo, é uma estupidez, não há razão para isso. A ideologia não devia separar as pessoas dessa maneira.

Ruy: Não, de maneira nenhuma, mas separa! Ideologia ou futebol!

Sei que durante muito tempo o Dia de Reis não foi um dia muito feliz para a sua família, para a sua mãe…

Ruy: Morreu o meu irmão nesse dia... Eu era muito pequenino, tinha 4 anos. Ele era actor no Teatro Nacional. Morreu 15 dias depois de lhe ter rebentado o apêndice em cena, tinha ele 22 anos. Eu estava em África com a minha mãe e com a minha avó, que estava a morrer, e a minha mãe recebeu o telegrama exactamente na altura em que a mãe morreu, e quinze dias depois do meu irmão ter morrido. Foi a única vez que concordei que um homem batesse numa mulher: o meu pai deu um grande soco à minha mãe porque ela queria matar-se, com o desgosto. E o meu pai não deixou... Não deve ter sido nada levezinho porque o meu pai era grande, era um homenzarrão.

Paula: A minha avó tinha um filho com 4 anos – o meu pai - e portanto o meu avô não podia de maneira nenhuma deixar que ela se matasse com um filho tão pequenino. Ela esteve uns tempos sem ligar nenhuma ao filho, como se com a morte do outro filho morresse também a mãe.

Ruy: A minha mãe, que na altura tinha para ai uns 46 anos, em poucos meses ficou com o cabelo todo branco. A minha irmã também era actriz, trabalhou muito tempo nos Parodiantes de Lisboa. Era filha do primeiro casamento da minha mãe…aliás, sou filho de um casal de viúvos: eu tinha irmãos de um lado e do outro.

Com esse quadro que já nos pintou e com o facto da sua mãe ter sido pianista, com a alma virada para as artes...

Ruy: E de ter jeito para representar, que a minha mãe também representava. Mas era amadora!

Suponho então que não tenha sido difícil a sua escolha de profissão…

Ruy: Não, o meu pai até gostava mais disso que a minha mãe, era apaixonado pelo teatro e por música.

Mas o seu pai tinha o gosto pela restauração, não era?

Ruy: Isso era mania, era só para gastar dinheiro. Não tinha jeito nenhum, a minha mãe é que o ia salvar sempre. Um dia descobriu que tinha um cozinheiro que fazia pasteis de massa tenra com ovos, e disse ao meu pai: ponha-o na rua que ele é ladrão.

Mas conte-nos como entrou no teatro.

Ruy: Eu pisei o palco pela primeira vez na Covilhã, porque o meu pai estava colocado lá como militar e a minha mãe era professora de piano…

Mas era pequenino?

Ruy: Oito ou nove, fiz a instrução primária na Covilhã e fui colega de carteira do (António) Alçada Baptista. Havia uma senhora que perguntou se eu queria entrar na História da Carochinha e foi essa a primeira vez que pisei o palco.

O que é que se lembra de ter sentido nessa primeira experiência?

Ruy: Muitos nervos e uma medalha que me deram 60 e tal anos depois...

Deram-lhe uma medalha?

Ruy: Que eu tinha mordido na altura, uma medalha da Nossa Senhora da Conceição em ouro. Deram-ma para não ficar nervoso e eu trinquei-a. Sei que depois a tal senhora deixou aquilo à família, passados uns anos deram-me a medalha que ela deixou para me ser entregue.

Ter essa recordação é giro! Mas estávamos a falar de família e o Ruy contou já várias vezes, inclusivé no seu livro “ Os Anjos Não Têm Asas”, o difícil que foi conquistar a família da sua mulher Rute…

Ruy: Exatamente, conquistar e reconquistar. Uma família que não me queria de maneira nenhuma ficou com uma amizade por mim sem limites. Passaram a ser muito meus amigos, pessoas de quem eu gostava muito.

João: Um deles era o meu tio, era o dono do “NÃO”!

Era?!

Ruy: Tinha uma casa muito conhecida, a “Casa das Lãs” na Rua da Conceição, em Lisboa.

João:  A primeira coisa que ele dizia era “NÃO”. “Ó tio, queres comer qualquer coisinha?” “NÃO!”

Dizia sempre não?

João: Era. Passados cinco minutos: “ Olha, dá lá aí só um bocadinho para eu provar!”, e depois comia.

Há um sketch do Gato Fedorento que é assim!

Henrique: O meu avô é assim…

João: O meu pai ganhou esse hábito, “ah, não quero!”, “não, não vou comer nada…”

Ruy: Sou mais ou menos, não sou tanto.

Henrique: Quase todos nós temos esse hábito!

João: Convém, quando dizemos muitas vezes que sim acham que somos parvos.

(risos) Mas Ruy, o que acha que foi o factor determinante que fez com que alguém que o rejeitava,  passasse a aceitá-lo? O que é que o Ruy teve de provar?

Ruy:  Que era uma pessoa bem formada e que andava cá na vida como um cidadão normal.

Ah! «Isso de ser actor está muito bem, mas…»

Ruy: É que há alguns que corrompem a profissão, não é?

Sem dúvida, e é preciso ver que a sua mulher era de uma família aristocrata e que portanto não era qualquer senhor que servia para cortejá-la.

Ruy: Mas depois também era bailarina, não nos esqueçamos. A família não sabia, só a minha avó é que sabia que ela dançava. Namorámos 9 anos.

No texto que a Rute escreveu (no seu livro), ela falou nessa posição que o Ruy tinha perante ela. Ao fim e ao cabo, não foi só o seu namorado: era o seu protetor, era o seu irmão, era o seu amigo.  Era aquela pessoa que a acompanhava para onde quer que ela fosse, para ter a certeza de que ela estava segura.

Ruy: Exatamente. E só fomos marido e mulher no dia do casamento. Fizemos questão de não avançar nunca! Mas foi difícil, até porque montámos a casa juntos, ela fez coisas para a casa, fez tapetes, fez muita coisa…

Fizeram o ninho juntos…

Ruy: Durante 3 anos, pelo menos.

Sempre não dando aquele passo, guardando para depois?

Ruy: Claro que mal pudemos...nasceu logo a filha.

(risos) Calculo!!!

Ruy: Mais tarde, eu fui para África com o Vasco Santana em 1955, tinha o João três meses. E quando voltei, ele não me queria ver ao lado da mãe na cama. «Quem será aquele gajo que está ali»... Tinha ele 1 ano e tal.

Ah, queria a mãe toda para ele. Há recordações que têm e que são muito curiosas. Uma delas é de quando voltava para casa levar os seus filhos a passear de carro e vê-los deitados no banco de trás a contarem estrelas…

Ruy: Lembro-me de vir directo do Teatro Experimental do Porto, em 1962/63, para estar com eles. Sei que vim 76 vezes a Lisboa! E eu dizia assim “Ó Rute, vamos levar os meninos a dar um passeio de automóvel?”, “Oh não, deixe-nos ficar aqui!”. Porque queriam era ver televisão! Entravam no carro, e 10 minutos depois estavam a dormir.

Paula: Contávamos as estrelas e os carros: ele contava os Minis, eu os Volkswagens.

Ruy: E os desastres,  sabiam onde tinham sido todos.

Paula: Isso era eu!

Ruy: Ali houve um grande desastre, ali houve outro grande desastre.

Henrique: Ainda hoje é assim...

João: Ela é a primeira cavaleira do Apocalipse!

Ruy: Havia um sítio perto de Leiria onde a minha filha adorava passear, o carro fazia umas curvas…

João: Onde havia aquelas pontes...

Paula: Onde morreu o Carlos Paião.

Ruy: Vês, sabe quem morreu aí!

Henrique: Vês!

Paula: Morreu aí o Carlos Paião e um colega meu da rádio.

Então devia ser uma estrada perigosa?

Paula: É uma estrada velha. É o meu espírito de jornalista! Eu explico: quando nós éramos miúdos não havia tantos carros como agora, e portanto havia muito pouco movimento em alguns sítios. Apesar de haver grandes filas, no caminho para o Porto havia zonas com filas intermináveis...

Ruy: Alenquer era muito complicado, depois havia um bocadinho que era a Recta das Raparigas... Depois em Rio Maior a gente ficava horas para subir aquela coisa até lá a cima.

Paula: Já posso falar?

Ruy: Fala, filha, fala que o teu falar tem graça!(risos)

Paula: Era normal, como eram poucos carros, que os grandes acidentes marcassem a memória. Hoje em dia há tantos acidentes e tanto carro que a gente já não liga nenhuma.

João: O mais mórbido era eu!

Paula: Não, tu eras muito mórbido mesmo.

João: Eu não sei bem que idade é que tinha, tinha para aí 3 ou 4 anos, já falava bem, e acho que isto aconteceu na praia das Maçãs ou nas Azenhas do Mar. Um dia os meus pais dão comigo...acho que foi nas Azenhas do Mar, não foi?

Ruy: Não posso falar! (risos)

João e Paula: A do poste!

Ruy: Ah, a do poste!

João: Estava um homem que subiu a um poste para arranjar as linhas de telefone. Ele subiu lá acima com aqueles ganchos e esteve lá…

Ruy: Mucifal?

Paula: Foi no Mucifal.

Ruy: E ele estava a olhar lá para cima...

João: O homem esteve lá em cima um quarto de hora, vinte minutos. E pensar que uma criança pequena aguentou vinte minutos a olhar para cima... E o meu pai: «que engraçado, ele está interessadíssimo…»

João: E o homem desce, e eu digo: «olha, não caiu!» (risos)

Paula: O meu sobrinho mais novo, o Diogo, sai ao pai. Quando um dia lhe perguntaram se estava a tirar macacos do nariz, ele diz: mas porquê, estão mortos!

João: É o que é piloto aviador.

Será que ainda tira muitos «macacos»  agora, no cockpit?

Ruy: Agora tira, mas já não diz nada!

João: Não pode é mandar pela janela! (risos)

Ruy: Reparem,  é aquilo que as pessoas quando estão nos semáforos estão sempre a fazer.

O meu marido a primeira coisa que reparou aqui em Portugal foi isso: «vocês tiram muitos macacos do nariz!»

Paula: É porque ele nunca foi à Alemanha, lá é horroroso.

Henrique: Mas lá nos Estados Unidos não têm «macacos» no nariz?

Foi o que eu lhe disse: mas tu não precisas de limpar o teu nariz? E ele: «assôo-me, não tiro macacos!»

Paula: Há «macacos» que não saiem com o lenço.

João: Mas olha, têm uma coisa pior, que é escarrarem na rua.

Paula: Mas os alemães a tirar macacos é uma coisa impressionante!

João: Eu não resisto: quando estamos parados no trânsito e é uma senhora a fazer isso, às vezes brinco.

Ruy: Mas é uma coisa que muita gente faz, é um sinal de descontração quase. Uma pessoa que faz isso tem carta pelo menos há cinco anos.

Porquê?

Henrique: Olha, eu ainda não tenho carta há cinco anos.

E fazes isso?

Ruy: É a descontração, sem querer fazem isso.

(risos) Onde é que nós estávamos?

João: Estávamos a falar de quando eu e o meu pai fizemos as pazes depois de ele voltar de África. Teve de me levar a ver a aldeia dos macacos…

Ruy: Foi ao pé dos macacos que ficaste convencido que eras meu filho!

Como é que foi?

João: Eu não achava graça nenhuma a estar um tipo a dormir com a minha mãe…

Paula: Tinha ele um ano.

E foi na aldeia dos macacos que o convenceu?

Ruy: As nossas mães são as pessoas mais sérias do mundo…

Sempre!

Ruy: E nós nem pensamos que elas têm relações sexuais! (risos)

Paula: Só quando ficamos adultos é temos essa noção. O Henrique dantes dizia que eu não podia casar com ninguém. Até que um dia olha para mim e diz-me assim: «tu vais juntar uma série deles e depois aquele que não disser nada é o que eu escolho.»

Que não disser nada?!

Paula: Nunca percebi o que é que ele quis dizer com aquilo.

Que idade é que ele tinha?

Paula: Tinha uns 7 anos. Mais tarde, mudou de ideias: «Podes casar, mas quem dorme contigo sou eu!»

Não me parece um bom acordo! (risos) Mas agora, falando para o João: estas recordações do teatro de que o seu pai fala no livro, quais são as que guardas, nomeadamente ligadas a pessoas como o Vasco Santana e não só?

João: Mas eu cresci lá dentro, repara...os primeiros passos que dei foi em cima de um palco! Foi em Felgueiras, numa tournée com o Vasco Santana. Portanto, falar destas personagens é como falar dos amigos do meu pai, são para mim pessoas muito presentes. Eu não consigo separá-las da família. Brinquei no camarim da Laura (Alves), do Canto e Castro, brinquei no camarim da Josefina (Silva) mas do António (Silva) não, porque o António nunca esteve no Teatro Nacional, esteve muito mais ligado à revista.  Mas conhecia-os muito bem, como conhecia o Costinha, como conhecia o Vasquinho... chamava-me o “Bolinha”. Eu já nem falo na Eunice (Muñoz) porque a Eunice até hoje é como se fosse uma irmã para o meu pai. A Cármen (Dolores)… Muitos deles já cá não estão. Brincava até nos bastidores sem fazer barulho porque sempre soube, e todos os miúdos na família aprendem isso, que os bastidores são um sítio sagrado onde não há barulho. Mas esta vivência com pessoas como o Varela (Silva), o Curado (Ribeiro) com quem o meu pai teve uma amizade muito grande, como o “Rica”...

Paula: O Rica é o Henrique Santos.

João: É tão presente, esta memória de todos eles. Lembro-me de estar no camarim da Laura ali no Teatro Monumental, ficava logo à entrada, do lado esquerdo. O meu pai dizia: «não vás para aí a correr», e a Cármen: «ai, deixa aqui o teu filho a brincar um bocadinho que o camarim é grande», coisas destas.

Anos mais tarde, no “Passa por mim no Rossio”, interpretou Vasco Santana.

João: Sim, exatamente essa palavra que disseste: interpretei, não o imitei. Foi para mim um forma de homenagear um homem de quem eu gostava muito, recreando-o para os outros. Conto-te uma história muito engraçada de um grande amigo do Vasco e da Laura, grande jornalista no “Comércio do Porto”,  que já não está entre nós. Na noite em que nós estreámos no Teatro de São João chamou-me a mim e à Rita (Ribeiro) à parte e disse-nos só isto: “os meus meninos hoje deram cabo da minha profissão, porque eu vi-vos a entrar, e esqueci-me que estava a ver dois actores. Só me lembrei dos meus amigos Vasco e Laura. Depois disso, deixei de poder fazer crítica, porque nada é pior para um crítico que perder a capacidade para a crítica por causa da emoção. Eu passei a ver aquelas duas personagens, que não eram o João nem era a Rita, eram o Vasquinho e a Laura. Agora faço crítica como?” Eu recebi isto como um elogio muito grande, porque foi exatamente isso que quisemos: fazer duas homenagens a dois grande amigos e a dois grandes atores.

Tremendas figuras da cultura portuguesa, e o vosso pai fala muito de ambos e especificamente da Laura Alves e do feitio que tinha…

João: Difícil, difícil!

Mas com muito carinho e amizade, isso é mais do que óbvio. Eu sei que a Paula também tem muitas recordações ligadas à Laura.

Paula: Da Laura, tenho, também brincava muito no camarim dela. Ela comigo brincava na bancada das pinturas e era a coisa mais maravilhosa: era um mundo de cores, era um mundo de batons, era um mundo de lápis… Era uma bancada enorme com um espelho lindíssimo. Não me esqueço que ela tinha todas as cores de sombras, e aquilo para uma miúda era um fascínio. E há outra coisa: a última entrevista que a Laura deu, deu-ma a mim.

Ah, não sabia!

Paula: A ultima entrevista que a Laura Alves deu foi no Dia Internacional da Mulher, no ano em que ela morreu, penso que foi em 84/85. Deu-me a entrevista por telefone porque foi para mim, nunca mais tinha dado entrevistas a ninguém. Esse registo ainda deve estar na Antena 1, porque fui lá jornalista durante muitos anos.

Ela morreu muito cedo, não foi?

Paula: Morreu muito cedo, sim. Quer ela, quer o Vasco, eram muito especiais para mim e para o João. Até porque com o Vasquinho éramos quase como irmãos. Depois ainda há a Rita Ribeiro e o Tó Semedo, que era filho da Maria José e do Artur Semedo, que já morreu. O Vasco e a Laura tratavam-nos como se fossemos filhos. O meu pai estava no Brasil e eu tinha sido operada, e fiz anos. O Vasco não quis que faltasse a prenda da menina e apareceu a bicicleta lá em casa, a minha primeira bicicleta! Tive bonecas lindas compradas por ele. Lembro-me que ele era um homem altíssimo, e eu era um cotomiço, muito pequenina - o Vasco Morgado pai, porque o Vasco filho é do tamanho da mãe. Lembro-me de, no Porto, ir a uma loja de brinquedos comprar um carrinho para o meu bebé chorão, vermelho.  Ou então de ir ao Monumental, à pastelaria, comprar caixas de chocolate enormes, maiores do que eu - uma delas era dourada! - e de ir para o teatro ter com o meu pai de mãozinha dada com o Vasco Morgado. Eu tenho memórias do Vasco como tenho de um tio.

Ou seja, apesar de estarmos a falar de um tipo de vida de artista, com a sua dose de inconstância, de saltimbanco, com poucas rotinas, e parece-nos que por causa dessa protecção que os vossos pais conseguiram criar à vossa volta, com essas pessoas-chave, tiveram um existir mais «almofadado», com muito mais família.

Paula: A ideia de família era muito presente, de ambos os lados. A minha bisavó era a matriarca da família: tinha quatro filhos, e um deles era a minha avó. Uma família de origem madeirense típica, onde as mulheres eram os elos fortes. Em miúdos, reuniamo-nos numa casa que tínhamos e éramos as únicas crianças da família porque a minha mãe durante muitos anos foi filha única, neta única, sobrinha única e depois viemos nós. A casa do “Banzão” tinha uma mesa no jardim,  e para além da bisavó estavam uma série de amigos da família. Para nos levantarmos da mesa tínhamos de pedir autorização à bisavó, à avó, depois aos pais e ainda tínhamos de dar um beijinho a cada uma das pessoas que estavam à mesa, era assim. Mas tínhamos os mimos todos! O meu tio-avô, irmão mais novo da minha avó, era um homem que adorava automóveis e negociava em carros desportivos. Sempre que tinha um carro novo aparecia lá em casa: era o Lamborghini 1000, depois o Opel GT 1900, e ia buscar-nos para darmos voltas com ele. Sabia que os sobrinhos-netos adoravam andar de carro! Veio daí o meu gosto pelos automóveis, do meu tio-avô, o tal que primeiro não queria ver o meu pai e mais tarde só ia lá a casa se o meu pai estivesse. Era uma pessoa extraordinária, dono de uma loja na Baixa...durante muitos anos esse é que foi o meu avô.

João: Fazendo um pouco a ligação com a tal estrutura familiar fora da família: ainda hoje me faz confusão passar o fim-de-ano fora do teatro. Durante muitos anos passava-o com o meu pai, subíamos ao palco com a minha mãe, a minha irmã, passávamos o ano a saudar o público que estava a assistir ao espetáculo. Chegando à meia-noite, íamos todos buscar o champanhe e as passas, saudávamos as pessoas e depois o espetáculo continuava, e para mim aquilo era o meu final de ano. O Natal era em casa, com a família… Hoje perdeu-se muito essa tradição.

A Paula há pouco dizia que agora era a pessoa que agregava a família.

Paula: Nós começámos um projecto, um espetáculo que está em digressão, e que para além de fazer homenagem à Língua e à cultura portuguesa junta ainda 3 gerações de actores. Na verdade, há mais na família, um do lado do pai do Henrique e os outros são deste lado.

Henrique: O meu tetravô!

Paula: Foi director do Teatro Nacional e do Conservatório Nacional e foi professor do Assis Pacheco, o Mestre Augusto Melo...

Henrique: Augusto Aguiar de Melo.

Paula: O nosso primeiro espetáculo foi em Março eu não era ainda sócia da empresa. Mas por circunstâncias da vida - a minha cunhada partiu em Abril - eu assumi a gerência. Houve uma união entre nós que permitiu algum conforto ao meu irmão, já estávamos muito juntos quando ele ficou viúvo e isso tem sido importante também para ele. Mais uma vez a família uniu-se muito e agora sou eu a patroa deles.

Então há pelo menos dois grandes embates que sofreram nos últimos tempos, primeiro com o falecimento da vossa mãe, da Rute…

Ruy: Vai fazer 8 anos!

...e depois com a Helena Maria, não é? Recentemente, e sem querer pôr as coisas num plano nem diferente nem semelhante, a Náná, que era alguém que fazia parte da vossa vida de muitas maneiras…

Paula: E que fazia companhia ao meu pai!

Qual é a vossa estratégia familiar para lidar com esses embates duros por que muitas famílias passam, quando algo assim nos atinge tão em cheio no coração?

Ruy: É estarmos presentes na altura em que a aflição existe. Estamos sempre juntos, não deixamos os outros sozinhos nem entregues à sua própria dor. Tentamos consolar a dor do outro, sentindo também a dor, não é verdade? A ideia de família sempre foi muito forte na minha casa.

Paula: Lembro-me que, quando o meu irmão já era casado, eu voltei para casa dos meus pais. Quando o João ia lá almoçar estávamos outra vez os quatro juntos - o Henrique estava na escola – e era sempre uma brincadeira pegada. Sempre nos demos bem, e claro que temos feitios diferentes, mas sempre nos demos bem. Muitas vezes divertiamo-nos com as asneiras do meu pai.

Ruy: E eu com as deles também!

Paula: Os netos baptizaram-no de ZDA.

ZDA?!

Paula: Zona de Desastre Ambulante! Porque a ele tudo lhe acontece: a nódoa caía-lhe ao lado do guardanapo e depois ia limpar a nódoa...entrava na casa de banho, abria o armário, tirava o pó de talco e quando abria o pó de talco caía todo em cima dele, e isto acontecia tudo na mesma cena, e cada vez que ele refilava nós ríamos mais! Mas houve uma redoma muito cor-de-rosa. Eu e o meu irmão fomos muito envolvidos num mundo cor-de-rosa, felizmente. Nós tínhamos uma ideia do mundo muito boa e afinal não é tão bom como a ideia que eles nos deram.

E essa constatação foi muito dura para si pessoalmente?

Paula: A partir do momento em que entro para a faculdade, começo a ter outro tipo de horizontes, outro tipo de saídas, a ver o mundo um bocadinho diferente. O mundo dos artistas para mim nunca foi nada depravado, eram pessoas normalíssimas com filhos, com famílias… É claro que havia alguns que não eram casados e que tinham as suas vidas, mas como eu sempre fui muito bem tratada por todos, era um mundo maravilhoso para mim.

Henrique, o teu avô para nós é o Ruy de Carvalho, para ti é o avô, o teu tio para ti é o tio, para nós é o João de Carvalho. Essa constatação de que as pessoas com quem tu convivias tão proximamente, com quem tu tinhas tanta familiaridade, tinham um determinado estatuto para os outros aconteceu quando?

Henrique: Não faço ideia, sinceramente!

Não houve nenhum dia em que te tivesses apercebido...«espera, o meu avô tem um determinado estatuto?»

Henrique: Não me lembro quando é que foi…

Não houve esse choque, é isso?

Henrique: Não! Desde muito pequenino que ia a programas com o meu avô. Lembro-me de ir a um programa, se não me engano era do Júlio Isidro, era o “Avôs e Netos”

Paula: Não foi o Júlio Isidro, não. O “Avôs e Netos” era o Manuel Luís Goucha! Ficámos no Hotel Peninsular, e ele tinha 3 ou 4 anos.

E tu tens essa recordação, sendo tão pequenino?

Henrique: Lembro-me que havia uma fonte no estúdio que deitava água e dava uma vontade de ir à casa-de-banho... (risos). Lembro-me de um jogo que eles faziam no programa que tinha um hamster qualquer, e adorei o ratinho e queria ter ficado com ele. É a memória mais antiga que tenho de mim e do meu avô na televisão.

Tu foste o único dos netos que escolheu este caminho da representação e disseste uma vez numa entrevista para a RTP que tinhas esse desejo de ir lá para fora para expandires um pouco o teu horizonte. Disseste algo que talvez tenha surpreendido algum do público: que lá fora talvez se trate mais de meritócracia do que de outra coisa, e cá dentro  nem por isso. Depois o teu avô até completou o que tu estavas a dizer e chamou-lhe «panelinhas».

Henrique: É desonesto, desleal. Não é que não haja disso lá fora, atenção, mas é que lá fora há muito mais um conceito de qualidade como factor determinante para uma escolha, penso eu.

Mas tu pertences a uma família nobre do teatro, das artes, do espetáculo. Quem viu essa entrevista pode ter pensado que era estranho dizeres isso vindo de um lugar de privilégio? Estás a perceber o que estou a dizer?

Henrique: Sim, sim. Mas eu não me queixo! Não estou a falar disto apenas pelo meu caso, estou a falar disto por toda a gente. Conheço muitos colegas que são bons e que não trabalham. Aqui dá-se primazia a outras coisas com as quais eu não concordo.

Continuas com esse desejo de ir para fora, é uma coisa que ainda está na tua cabeça?

Henrique: Está e acho que vai continuar a estar. Mas eu tenho um objetivo apenas: trabalhar bem, e desisti um bocado dos sonhos desse tipo. Acredito que se fizer as coisas bem, tudo pode acontecer aqui também… Se um dia estiver lá fora, óptimo, vou continuar a fazer as coisas como faria aqui.

Muito bem. Ruy, voltando a falar da cadelinha Náná, e pensando que este projeto tem como objectivo falar da solidão dos mais velhos, do isolamento em que alguns estão: sendo o Ruy tão activo, é esse o antídoto para a tal solidão que poderia acontecer? Ou no seu caso não se trata sequer disso?

Ruy: Eu sou solitário quando me apetece, e gosto, a solidão imposta é que me custa muito. No meu caso, tenho filhos, netos, tenho uma família… Tinha uma cadelinha que me acompanhava, vivia comigo e que se foi embora, mas da qual eu tenho uma boa recordação. É claro que me faz muita falta tocar-lhe, mas ela está presente. Ela nasceu ao pé de mim ,viveu 16 anos comigo, e foi ficar na terra onde nasceu. Está presente no meu coração, ela e outros, que eu tive outros cães de quem gostei muito! Mas continuam a manter-se ao meu lado com retratos, é assim que preservo a sua memória.

Tendo em conta a situação de muitos idosos aqui em Portugal, de negligência e de descaso, o que gostaria de dizer sobre isso?

Ruy: Bom, em 1999 fui presidente do Conselho Nacional para a política da terceira idade e andei pelo país a falar aos velhos para não se entregarem. A velhice não é uma coisa que humilhe, é uma coisa bela, bonita. O meu pai dizia com uma certa razão: «poucos são os que vivem muito e muitos são os que vivem pouco». Na minha opinião, quanto mais velhos formos, melhor, e quanto mais úteis formos, também! Nós temos de ser úteis para os mais novos e dar o exemplo de trabalho. Eu tenho colegas que perguntam:« tu ainda guias? Guio e tu? Ah, eu canso-me muito!» E são mais novos! A vida é uma coisa maravilhosa que nos foi dada e nós temos de gozá-la o mais possível. A morte é certa, ninguém fica cá (acho que só houve o Cristo que ressuscitou, mais ninguém até hoje) e temos de viver a vida que nos foi dada, que pode durar muito ou durar pouco.

Segundo algumas religiões e teorias, há muitos que partem cedo porque já viveram o suficiente na Terra, e outros estão cá até completar o seu ciclo. Isso é para aqueles que acreditam, os que não acreditam...coitados, são mais infelizes porque não têm nada pela frente. Eu, quando parte um amigo sei que está lá em cima e quando eu chegar vamos ter uma companhia de teatro enorme...com tantos bons actores que já lá estão podemos representar todos! A vida não acaba, acredito que apenas há algo que sai de dentro de nós quando morremos. Aquela energia vai para outro sítio, o corpo desaparece mas aquela coisa que o animava continua a existir.  Recomendo um livro que se chama ”Palhaço de Mim Mesmo”, está lá tudo explicado.

O João teve uma doença grave por volta dos 15 anos, não foi?

João: Uma hepatite, que começou aos 11 para 13 e depois aos 15 anos.

E pediu aos seus pais para casarem pela igreja. Eles não eram casados pela igreja porquê?

Ruy: Porque eu acho que o casamento na igreja é uma bênção que os padres dão, e não se pode abençoar aquilo que não se sabe se é bom ou mau.

(risos) Já percebi!

João: Aos 15 anos fiz a comunhão, o crisma e o casamento dos meus pais, tudo no mesmo dia.

Mas por que é que para si isso era tão importante?

João: Eu sou Católico mas não sou ferrenho, e creio que todas as religiões têm algo de similar, principalmente aquelas que falam de amor ao próximo. Eu tenho um grande respeito pelo Budismo, por exemplo. Apesar de ser Católico Apostólico Romano, os meus pais nunca me obrigaram a ir para a Catequese, fui por vontade própria. Encontrei um grupo de gente muito bonita, dois sacerdotes extraordinários: um foi quem me casou o outro foi quem me fez a comunhão e casou os meus pais…

Estiveram ali presentes em momentos-chave, é isso?

João: Exacto, o Padre Álvaro Proença e o Prior Carlos de São Domingos de Benfica: duas pessoas que me influenciaram muito, influenciaram-me tanto que ainda hoje tenho dificuldade de encontrar pessoas desse calibre. Um porque era um homem prático: tinha sido capelão do exército, e fugia comigo às escondidas pela parte de trás da igreja para podermos ir jogar ténis. As beatas não achavam graça que o Prior jogasse ténis! O outro, acho que nunca me confessei a ninguém sem ser ele … São duas pessoas que me conquistaram muito. Depois juntou-se a tudo isso um grupo de jovens com quem me dava muito bem e como tal achei que era esse o meu caminho. Hoje não sou tão dedicado - vou à missa, claro, mas na altura cheguei a ser acólito e pertencia ao coro da igreja.

Vamos falar de futebol, Henrique? Afinal é Benfica ou Porto?

Henrique: Eu já fui do Porto quando era pequenino, mas depois a doença passou- me e eu retornei ao meu Benfica. Na verdade, desde pequenino que eu era do Benfica, se alguém dissesse viva o Benfica! e eu ficava assim, a tremer, com as mãos no ar. (risos) Gosto muito de ser do Benfica!

O que é que os colegas na escola diziam quando sabiam que eras neto do Ruy de Carvalho? Ficavam admirados?

Henrique: As escolas onde eu andei eram escolas da minha zona, ou seja, nós conheciamo- nos quase todos desde sempre. Sempre tive colegas extraordinários em todas as escolas onde andei. Quando fui para a escola de teatro, aí se calhar foi um bocadinho diferente, mas sem problemas nem preconceitos.

E o avô, tinha tempo para te levar à escola ou nem por isso?

Henrique: Não. A escola primária em Benfica era para aí a 250 metros de casa, portanto sempre fui a pé para a escola. A secundária também era perto o suficiente, por isso a menos que estivesse a chover muito ia sempre sozinho e a pé.

E lembras- te da primeira vez que viste o teu avô na televisão a representar?

Henrique: Acho que foi na novela “Todo o Tempo do Mundo”. Não me lembro de o ver na televisão nos anos 90, ele fazia muito teatro nessa altura.

Mas o facto de o avô ser o actor influenciou a tua escolha de carreira?

Henrique: Não sei, mas penso que sim!

 Tu contracenaste com o teu avô na novela “Olhos de Água”, certo?

Henrique: Foi isso, sim.

E já contracenaste com a Eunice Muñoz?

Henrique: Contracenei com a Eunice Muñoz também na “Olhos de Água”, e depois no TEC em Cascais. Estivemos à volta de 2 anos em cena, intermitentemente.

E o que é que sentias a representar ao lado de gente como ela?

Henrique: Quando era pequenino, não me lembro de muita coisa, nem com o meu avô nem com a Eunice. Eu gosto muito da Eunice, e se calhar há muita gente que acha que ela é vedeta, mas não é nada. Podia ser! Ela tem uma humanidade nas personagens que faz! Há pessoas que dizem que criam personagens que não têm nada a ver com aquilo que são e há outras, tal como a Eunice, que se usam a si mesmas para chegar à personagem. Eu seja, utilizamos aquilo que a personagem tem de igual a nós e depois adicionamos o resto.  Nós temos tudo, e somos capazes de mudar, temos a capacidade de imaginar. Apesar de ser difícil e de as pessoas não conseguirem por vezes chegar à virtude de mudar mesmo a nível pessoal... Eu tive de mudar muito desde que comecei a trabalhar, porque senão não trabalharia mais na vida. Não era um bom profissional, de todo. No ano passado estive a estudar uma certa técnica de representar que me ajudou muito nesse processo. E além disso, trabalhar com pessoas como a Eunice ajuda muito...

Acaba por ser uma escola, não é?

Henrique: Até a ver filmes nós aprendemos.

E quando estás a representar consegues chegar a casa sem a personagem ou vai um pouco contigo para casa também?

Henrique: Vai. Ao longo da vida de um actor acho que há uma desconstrução daquilo que tu és. Nós abrimo- nos tanto que a certa altura não sabemos aquilo que somos, estamos tão perdidos no meio de tanta coisa que conhecemos e que experimentámos que tudo pode ser verdade, não é? E podemos ser tudo e não há uma certeza de nada... Eu levo sempre qualquer coisa comigo.

Então uma pessoa que tenha uma profissão dita normal tem uma vida inteira em que se vai moldando, mas quando chega ao fim da vida é como se fosse sempre a mesma pessoa. Vocês, ao serem actores, ao representarem tantos papéis, no fim da vida é como se tivessem vivido várias vidas diferentes

Henrique: Eu penso que sim, é como uma pessoa que lê milhares de livros e acredita em todas as histórias. Sabes aquelas pessoas que estão a falar e recitam- te frases de escritores? Isso é uma amostra desta transformação. Pode não acontecer com todos, depende do trabalho que cada um faz, mas acho que é muito provável que no final sejas muito diferente daquilo que eras no início.

Vamos falar sobre o vosso espectáculo Trovas e Cantigas? O espetáculo não tem uma data para estar em palco, acontece quando são convidados para tal, é isso?

João: Sim, é conforme os convites que recebemos. É um espetáculo que se põe em cena em qualquer altura com muita facilidade. É uma questão de fazer dois ou três ensaios nesse sentido para retomar à cena, porque na verdade estamos sempre a trabalhar com as mesmas pessoas em projectos diferentes.

Isso quer dizer que já estão a preparar outro espectáculo?

João: Vamos começar a preparar outro espectáculo, sim.

E dentro do mesmo alinhamento?

João: Eu queria que nós preparássemos dois tipos de espetáculo: um para o público infanto- juvenil, que é uma zona de mercado que está praticamente desaparecida. É importantíssimo para nós educarmos um futuro público e dar- lhes bom teatro, com bons textos. E depois continuarmos com este projeto, que ainda tem possibilidades porque existe muita coisa na nossa poesia e na nossa música para conseguirmos explorar e mostrar ao público.

E esse futuro espetáculo manteria a mesma estrutura familiar?

João: O mesmo tipo de estrutura mas com outros textos, com outras músicas. De qualquer maneira estas coisas deixam marca exactamente porque têm um tempo limitado. Mas imaginação não nos falta!

E cada espetáculo do Trovas e Cantigas tem um convidado diferente?

João: Nem todos. No Cartaxo, tivemos connosco o Mico da Câmara Pereira, no Trindade tivemos o Paulo de Carvalho, em  Elvas temos um amigo de quem gostamos muito e que é um músico extraordinário: o Janita Salomé. Nas zonas mais urbanas teremos sempre alguém ou então homenageamos alguém dessa cidade.

A forma mais fácil de saber o próximo sítio será sempre através da vossa página do Facebook, certo?

Paula: Sim, na nossa página de Facebook e na do meu pai também!

Este texto foi escrito de acordo com a grafia antiga por desejo dos autores.