R.C. - Onde nasceram os seus netos?

Celeste - Tanto as minhas netas como o meu neto nasceram cá, mas depois foram para lá. O Diogo fez lá o liceu, mas depois quis vir para Portugal. Veio viver para a minha casa. Aliás, tenho a impressão que foi por causa do fado que ele veio embora, para andar comigo para todo o lado. E ainda hoje vai comigo para onde eu vou. Diz que é por eu não saber falar línguas (risos). Acabou por se tornar o meu agente.

R.C. - O Diogo acaba por ter na sua vida um peso diferente das suas netas, é por estar mais próximo?

Celeste – Todos os meus netos são muito agarrados a mim. Não posso dizer que exista um preferido, pode-se dizer que se entende melhor certas coisas… (Diogo insiste para que a avó admita que ele é o neto preferido; risos). Não tenho mais amor por uns do que por outros. Com o Diogo posso dizer que me entendo melhor. Ele entende-me e eu entendo-o. Nunca nos zangamos. Mas às vezes gritamos um com o outro no carro. Eu pergunto-lhe porque vai por aquele caminho…

Diogo – A minha avó precisava de um pedal de travão só para ela, passa a vida a travar. Continua a mandar-me ir por estradas que são proibidas há mais de 20 anos!

Celeste – Eu agora não guio. Sei guiar, mas não tenho carro.

Diogo – Felizmente, avó!

Celeste – Eu guio muito bem!

Diogo – Claro que sim, avó. Aliás as pessoas apitavam muito na rua porque te conheciam, não era por causa da condução…

Celeste – Pergunta à tua irmã Filipa! Na América, sem conhecer nada, nem estradas nem o trânsito, mesmo assim eu conduzia.

Diogo – Conduzia tão bem que tinha uma faixa própria, a do meio!

Celeste - Ele está a fazer graça, eu guio muito bem! (risos)

R.C. - As outras mulheres que não guiavam, como é que olhavam para si?

Celeste – Não sei, nem estava preocupada como elas me olhavam…ainda se fossem algum rapazinho giro...! Mas insisto em dizer que eu guiava bem! Guiava tão bem, que muita gente dizia que eu parecia um chauffeur de táxi!

Diogo – Avó, não sei se sabes, mas isso não era propriamente um elogio! (risos)

Celeste – Nunca bati em nenhum carro, nem nunca deixei que me batessem!

R.C. - Discussões de avó e neto à parte, já percebemos que o Diogo ia sempre consigo, e foi um pouco o neto saltimbanco que a acompanhou a todo o lado.

Celeste – Pois, ele gosta muito de fado.

R.C. - Claramente o coração dele sempre esteve inclinado para o mesmo lado que o da avó.

Celeste – Ele só tem pena de não cantar. Hoje já lhe passou, mas em pequeno ele vinha frequentemente ter comigo começava a cantar e perguntava “Oh avó, vê lá se eu já canto melhor” (risos) Mas os meus bisnetos vão pelo mesmo caminho. O Sebastião tem uma banda, que tem influências que estão bastante longe do fado. Tem uma voz fantástica mas não quer cantar, prefere tocar guitarra na banda e seguir a carreira de cineasta do pai. Quando canta canções em inglês, canta no tom deles e canta muito bem. Já o fado…é uma desgraça. O Sebastião para o fado não vai, já o Gaspar…

R.C.- O que sente uma bisavó quando ouve o bisneto (Gaspar) dizer que quer aprender fado e a tocar guitarra portuguesa para a acompanhar?

Celeste – Ele dizia muitas vezes isso. Eu respondia sempre que quando ele soubesse tocar guitarra já eu tinha ido “viajar”. O que é facto é que aprendeu. Tinha razão! Já me acompanhou várias vezes. Como eu quero viver pelo menos até aos 100 anos, ele ainda tem muito tempo para me acompanhar. Estar vivo é uma coisa maravilhosa. Desde que a pessoa esteja como eu estou! Tenho muito prazer na vida. Abrir os olhos ver e ouvir coisas maravilhosas. Tanta gente que diz que a vida é uma chatice... nem sabem o que dizem!

R.C. - A alegria reina diariamente na vossa casa?

Celeste - Todos os dias! A alegria reina, pois só o facto de estarmos vivos já é uma razão para estarmos todos contentes. Há muita gente que não é feliz com medo de viver. As pessoas são exigentes demais, acham que precisam de muita coisa para viver, não valorizam o que têm. Tantas vezes que me sinto contente com coisas mínimas, é tão bom!...

R.C. - O que acha que tem conseguido passar às suas filhas, netos, bisnetos, que valores acha que deixa como herança sua?

Celeste – Financeiramente não deixo herança nenhuma! A vida dá-nos o conhecimento e essa é a herança deles. A maior herança que eles recebem de mim é o amor que tenho sentido por eles e esse é o valor mais nobre que lhes posso deixar.

R.C. - Foi uma avó “fora-do-formato” ou também teve o lado da avó tradicional?

Celeste - Também fui tradicional muitas vezes. Ia buscar e pôr à escola...fazer a comida que eles gostam é que não, que eu sou má cozinheira. Se fazia um prato que o Diogo gostasse, andava uma semana inteira a fazer-lhe a mesma coisa (risos). O Diogo acabava por dizer “Avó, eu gosto, mas não tanto para comer a semana inteira a mesma coisa” (risos) Não tenho imaginação nenhuma para a cozinha. Faço muito bem pataniscas e omeletes, faço guisados, mas não sei fazer souflées, nem essas coisas complicadas.

R.C. - Falou-nos da fama que nunca procurou. Esse tipo de pensamento também estava muito longe da cabeça da sua mãe, da sua irmã...

Celeste – Estava longe do pensamento de todos! Não era esse o objetivo, nem o que nos movia. Não era o nosso sonho. Eu queria ser aviadora! Imaginem, eu que tenho medo de andar de avião… Achava que devia ser lindo andar lá em cima, no meio das nuvens, achava poético, romântico. Ao longo dos anos já viajei muito. É engraçado que tenho medo dos aviões, mas vou!

R.C. - Isso tem a ver com a sua postura na vida, não é? Mesmo que alguma coisa seja intimidante para si...

Celeste – Eu vou na mesma! Salto o muro, quero ver o que está do outro lado. Esta é a minha natureza. Na minha estreia, eu não queria entrar em palco. Via a casa cheia de gente, e tiveram de me empurrar! Tinha 22 anos. Aconteceu no antigo Casablanca, que depois se tornou no ABC. Eu nunca fui amadora: cantei uma quadra na Adega Mesquita e fiquei logo contratada, com caderneta profissional e tudo. A partir daí não parei mais. Foi Espanha durante mês e meio na melhor casa de espetáculos de Madrid, foi Brasil … Em Madrid aconteceu-me uma coisa engraçada. Depois de cantar três fados disse ao empresário que me ia embora, porque não estava habituada a cantar no centro da casa. Mudou-me de local e fiquei a cantar no sítio da orquestra. Estava vestida de preto e eles não percebiam que era a tradição. Mandou-me comprar um fato branco, lindo, bordado, maravilhoso! Era para lá estar 2 semanas acabei por ficar mês e meio, já cantava espanhol e tudo.

R.C. – Hoje, olhando em volta e vendo alguns programas de televisão, parece que a fama acaba por ser o que chama as pessoas para cima dos palcos. Como sente as diferenças, os contrastes entre a forma de estar de hoje e a de outros tempos?

Celeste – Nem sei … Nunca pensei nisso. Vou para o palco para cantar. A minha finalidade é cantar pois as pessoas estão lá para me ouvir. Depois, vou-me embora. Não sei o que os outros sentem. Não me choca quem cante só pela fama! Não gosto do julgamento alheio, e não costumo julgar os outros. Eu entendo as pessoas, cada pessoa tem a sua maneira de ser, acabamos por ser todos diferentes. Não sou de julgar que este canta bem ou canta mal, podem ser diferentes de mim e não quer dizer que cantem mal. Não sou eu que estou certa e os outros estão errados! Uns sentem de uma maneira e outros sentem de outra.

R.C.- Canta todos os dias? Onde a podemos ouvir?

Celeste - Já canto profissionalmente há mais que 70 anos. Atualmente canto 3 dias por semana: no Bairro Alto, no Café Luso, em Alfama, no Boteco da Fá e na Mesa de Frades. Também estive no restaurante Bacalhau de Molho durante 10 anos e na Travessa do Empossado 35 anos.

R.C. - O que sente uma fadista da sua geração, com uma carreira de tão longa, que continua no ativo, ao ouvir as “novas” vozes do fado?

Celeste – Têm uma voz bonita! Daqui a uns anos ainda vão cantar melhor. Vão amadurecendo acabando ainda por dar mais emoção ao fado, mais sentimento.

R.C - O facto do Fado ter sido distinguido pela UNESCO como património imaterial da humanidade, foi importante para si?

Celeste - Foi uma emoção tão grande ver o fado ser reconhecido. Já era muito importante para Portugal e conhecido em muitos países, mas este reconhecimento acabou por valorizar o fado ainda mais.

R.C. - Os fadistas mais novos pedem-lhe conselhos?

Celeste - Não! No fado não se dá conselhos a ninguém. É uma coisa que vem de dentro. Não se pode ensinar a cantar. O fado é para se sentir e isso não se pode explicar, como tal, não posso dar opiniões a ninguém sobre como é ser fadista, se eu própria não sei.

Há uma coisa que eu faço quando sinto que as pessoas cantam bem, é incentivar a lutar e nunca desistir do que sentem. O fado é uma intuição, eu nunca aprendi fado. Hoje canto uma canção da forma como a estou a sentir, amanhã posso sentir a canção de uma forma diferente logo vai ficar completamente diferente de como a cantei no dia anterior. Isto não se ensina, sente-se!

R.C. - Ao longo da nossa conversa, já nos disse várias vezes que vive o presente. Não sente saudades de nada?

Celeste – Sinto saudades da minha infância! Tinha a família toda junta, é só disso que tenho saudades. Tinha uma família muito bonita! Como seres humanos, todos eram muito bonitos.

O neto Diogo Varela Silva realizou o documentário Fado Celeste para celebrar os 90 anos da avó. Assistam aqui ao vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=qUhplW9ItF0

Não percam na próxima semana a 3º e última parte dos Retratos contados desta cumplicidade.