Depois da publicação de parte da entrevista na revista Caras, partilhamos convosco agora a entrevista na íntegra.

Num documentário que o Diogo Varela Silva realizou, o Fado Celeste, a Celeste canta um fado em que a letra diz o seguinte ” Sei que a vida continua, mas vejo a passar na rua os meus tempos de menina...” Esses tempos de menina ainda continuam muito presentes na sua memória?

Claro que estão! Felizmente estão, porque fui feliz! É uma altura em que as pessoas têm sonhos, acham que tudo é belo, não se dá pelas dificuldades. Claro que os tempos de menina estão sempre presentes.

R.C. – A família Rebordão Rodrigues veio do Fundão para Lisboa em 1928; que recordações tem da sua infância?

Celeste – Do Fundão tenho poucas recordações pois era muito criança, vim para Lisboa com 5 anos. Lembro-me daquilo que a minha mãe nos contava, de vez em quando. Com 17 anos estive lá uns 15 dias, e na verdade essa é a recordação mais presente que tenho do Fundão. Mas lembro-me que o meu pai era músico e tocava numa banda. Todos os dias dava a volta à vila, e eu lembro-me ainda dessa música que a banda tocava. Tinha eu uns 4 anos. A Amália nasceu em Lisboa, mas foi por acaso. O meu pai foi tocar a Alpiarça e ficou em casa dos pais. A minha mãe estava no fim do tempo e por isso ela nasceu em Lisboa e depois foi para o Fundão. Foi lá batizada e lá ficou até aos 3 anos e meio. Só depois veio para casa dos meus avós. Por isso é que só conheci a minha irmã tinha eu 5 anos e ela 8. Até aí só a conhecia por retratos. Lembro-me de quando começámos a ir juntas às compras: eu falava à moda do Fundão e a Amália à moda de Lisboa. Eu dizia: “meia rate de açúcar, uma onça de chá,” que eram os termos de lá, e ela achava muita graça. Dizia sempre para ser eu a pedir, para depois se rir.

R.C. - Quando vieram viver para Lisboa, para que bairro foram morar?

Celeste - O meu pai arranjou um contrato para uma Sociedade de Recreio em Campolide. O contrato era de 2 anos e com casa, uma vivenda. Vivemos aí 2 anos. Quando terminou o contrato é que fomos viver para perto da minha avó materna, em Alcântara.

R.C. - É muito curioso ver duas irmãs, que não se conheceram logo desde que nasceram, mas só alguns anos mais tarde, que até então não tinham nenhuma convivência, passarem a ser inseparáveis - tanto que a vossa mãe dizia que pareciam “ o roque e a amiga.”

Celeste - Andávamos sempre juntas! Mas foi assim, logo que nos conhecemos, não nos largámos mais. Onde ia uma, ia outra. Chorava uma, chorava a outra - como se fossemos gémeas. Muitas vezes nem era preciso falarmos para nos entendermos. Bastava um olhar e uma sabia logo o que a outra queria. E foi assim pela vida fora. Guardávamos segredos sobre namorados. Namorávamos às escondidas, pois naquela altura não se podia namorar sem a autorização dos pais. Vestíamos as roupas uma da outra. Mas esse hábito das trocas de roupas ficou até muito tarde, até mesmo com as minhas outras irmãs isso também acontecia.

R.C. – Dos seus avós, que recordações tem?

Celeste - Da minha avó, não tenho grandes recordações. Era um bocadinho mais rígida, mais retorcida. Do meu avô, tenho recordações maravilhosas. Quando chegava do trabalho, os netos agarravam-se todos a ele, os meus irmãos, os meus primos, e ele levava-nos a todos nos braços. Era um velhinho simpático, muito querido, aos serões juntava-nos a todos e contava-nos histórias de medo, de terror. Íamos todos para a cama aos saltos…mas era muito querido. A minha avó, não! Os pais do meu pai não conheci bem. Só a minha avó paterna, era uma senhora magrinha, muito senhora do seu nariz, que saía à rua com o seu chapelinho… Não vivia connosco, era um bocadinho mais distante. Também tenho boas recordações dela, mas os netos que viviam com ela andavam «na linha».

R.C. - A presença da música na sua família é fortíssima, de muitas maneiras diferentes. É difícil para si imaginar uma vida em que a música não tivesse tido esse papel?

Celeste – Isso teria sido uma grande tristeza! A música deu-nos beleza à vida, quando estávamos todos juntos, as nossas paródias, os nossos serões eram passados a cantar e a ouvir música. Como tal, a música esteve presente na minha vida desde pequena. Fazíamos piqueniques, já em Lisboa, e alguém levava sempre uma grafonola: ouvíamos o fado, a Maria Alice, o Bettencourt a cantar o «Passarinho da Ribeira»… A música esteve sempre presente na vida da minha família. A minha mãe tinha uma voz como eu nunca ouvi. Tinha uns graves maravilhosos, tinha um requebro na voz… Tudo o que eu e a minha irmã cantávamos, devemos-lhe a ela. Aprendemos com ela! Cantava sobretudo folclore da Beira, que é lindo. Foi ela quem nos deu o gosto de cantar. Esta não é a razão de ser fadista, mas a razão de se gostar de música.

R.C. - Quando estavam todos juntos à mesa reinava a alegria?

Celeste – Bom, não era bem à mesa, pois naquela altura comíamos no colo. Só se comia à mesa de vez em quando, nas festas. De resto era agarrar no prato e cada um comia no seu colo. Era giro. Quando se é miúdo, acha-se graça a muita coisa…

R.C. - Falando de família: para si o casamento não era algo em que pensasse, mesmo com o namorado que teve durante mais tempo, o Zé Casimiro (irmão da fadista Mirita Casimiro). Entretanto, conheceu o ator Varela Silva, e aí as coisas mudaram - quis casar e casou. Era uma mulher que, ao contrário da maioria nessa altura, não pensava em ter filhos mas depois acabou por ter duas filhas...

Celeste - Estive dois anos sozinha, e não pensava ter filhos. Achava que era uma grande responsabilidade, tinha medo de não estar à altura. Sou uma pessoa que deixa fazer tudo o que querem, e como tal achava que não tinha condições para educar uma criança. Mas depois de ter a primeira …quis logo ter a segunda. Ter um filho é a coisa mais maravilhosa que pode acontecer a uma pessoa. Penso que, ao ter um filho, qualquer pessoa se sente a pessoa mais rica do mundo, alta quando é baixa, bonita quando é feia … É uma alegria que não se pode explicar.

R.C. - Que idade têm as suas filhas agora?

Celeste - Uma tem 57 e a outra 55. Estão as duas nos Estados Unidos da América. Mas a mais velha reformou-se e vem agora para Portugal no fim de janeiro. Está lá há 30 anos e a outra há cerca de 22 anos.

R.C. - A Celeste costuma visitá-las?

Celeste - Sim. Quando ia lá cantar, ficava sempre um mês, dois meses... Depois de lá ter nascido a minha neta, eu ficava com saudades do bebé e cheguei a ficar lá 9 meses. E ia matando as saudades assim. Mas falamos muito pelo telefone e pelo Skype. Para isto, eu gosto muito das novas tecnologias. É muito agradável.

R.C. – E que tipo de avós foram os seus pais?

Celeste – Os meus pais tiveram muito pouco tempo para serem avós. Quer dizer, a minha mãe teve mais tempo... Era uma avó fantástica, melhor que eu.

R.C. - Porquê?

Celeste – Era uma mulher fora de série, de uma bondade extrema. Nunca pensava nela, sempre nos outros. Quando alguém estava doente ela não arredava pé, ficava ali acordada toda a noite, tentando arrefecer-nos para baixar a febre... Era uma pessoa fantástica.

R.C. - Teve uma educação modesta, apenas a instrução primária, e no entanto aprendeu inglês e também alemão?

Celeste – Aprendi alemão, mas esqueci tudo. (Começa a falar alemão) , e também me interessei pelo francês, embora não fale tão bem como o inglês. Tenho facilidade em aprender porque gosto de línguas. Sei uma data de palavras em várias línguas. Até estoniano... Tenho uma estória muito engraçada para contar que se passou no restaurante Bacalhau de Molho, com o primeiro-ministro da Estónia acompanhado por uma data de convidados: o meu patrão deu-me o livro de honra da casa para eu levar ao primeiro-ministro. Cheguei lá a falar em inglês e disse-lhe “Olhe, a única coisa que sei falar na sua língua é: (começa a falar Estoniano), e eles todos se fartaram de rir, todos espantados, desataram a bater palmas… Coisas que fui aprendido com a vida e ainda não me esqueci.

R.C. - Algum dos netos ou bisnetos herdou de si essa facilidade para as línguas?

Celeste - Só têm facilidade com o inglês. As minhas filhas, para além do inglês, falam francês e um espanhol “aportuguesado”.

R.C. - A que se deveu a escolha das suas filhas de emigrarem?

Celeste - A mais velha tinha uma amiga na América que era secretária da embaixada, e decidiu ir experimentar. Tinha um ordenado bom cá, com 16 anos já ganhava 70 contos (350 euros), o que era muito bom na altura. Foi a primeira mulher a operar com computadores em Portugal e era muito boa no que fazia.

Diogo (neto) - A minha mãe trabalhava na Unilever. Aquilo era uma sala enorme, para entrarmos lá tínhamos de colocar protetores auditivos por causa do ruído das máquinas! Lembro-me de ser miúdo e lá ir, toda a sala era o sistema operativo, de enfiar cartões …

Celeste - A minha filha é a única que não tem um curso superior naquela embaixada. Foi ficando, depois foi chanceler e cônsul.

R.C. – Vamos falar do seu trabalho: muita gente não sabe, mas a Celeste esteve no Ed Sullivan Show. Este programa de televisão era o expoente máximo da carreira para qualquer artista americano e internacional. Da passagem por um programa tão importante na altura, também não ficou nenhum registo?

Celeste - Nada! Ficou a recordação de eu ter lá ido cantar. Foram muito simpáticos, amorosos mesmo. Também fui a outro programa importante, do Richard Dimbleby, o Panorama. Fui recebida em Londres como uma rainha, com chauffeur às minhas ordens. Fui à televisão, e depois ele deu um jantar em minha honra, com convidados importantes … Tudo isto foi lindo, mas depois passou e acabou. Vivi, está vivido!

R.C. - Como lidava com o facto de ter de ir para fora por necessitar de trabalhar e ter de deixar cá as suas filhas?

Celeste – Era uma coisa horrorosa, custava imenso! Mas pensava que ia e que entretanto voltava. Mas houve muitas propostas de ir para fora que não aceitei para ficar com as minhas filhas e com os meus netos.

R.C. - É engraçado olhar para trás e fazer um retrato da vida quotidiana de outros tempos, que é tão diferente da vida de agora. Entre aquilo que se ganhou e aquilo que se perdeu, entre aquilo que teve como experiência de família e o que vê nas famílias de agora, o que se ganhou e se perdeu?

Celeste – Perdeu-se o convívio! Agora há televisão, telemóveis … É costume eu ir a cafés e restaurantes e ver as famílias juntas na mesma mesa, mas em vez de estarem a conversar entre eles, cada um está a mexer no seu telemóvel. Não sei se com isto se ganhou alguma coisa. Quando não há convívio, não há a mesma ligação, não é?

R.C. – Não gosta das novas tecnologias?

Celeste – Não! Nem sequer tenho telemóvel. O meu neto já me ofereceu um, e passados dois dias entreguei-lho de volta. Nunca o encontrava na mala quando tocava …

R.C. - Mas tem uma página no Facebook...

Celeste - Tenho, mas não fui eu que a fiz! É o meu neto que a administra. Foi iniciada por um fã brasileiro, o Alex.

R.C. - Acaba por ser bom, para as pessoas saberem novidades suas.

Celeste – Sim, serve para saberem coisas sobre mim pois eu não guardo nada, nem uma entrevista! Rasguei todas as fotografias antigas. Não sou muito de guardar essas coisas. Faço um espetáculo, apagam-se as luzes, vou para casa, esqueço aquele espetáculo! Fico à espera do próximo. É assim que eu vivo. Às vezes não sei onde vou cantar nem onde eu cantei, nunca me lembro de nomes, locais, datas… É preciso serem muito marcantes para eu recordar essas coisas. Vivo o hoje! Amanhã não sei se estou viva e o passado já vivi. Não sou saudosista, a não ser dos tempos da minha infância. Era tão agradável, estávamos todos juntos, era tão feliz … Disso sou saudosista, agora do resto não!

R.C. - Na vida de um artista ou o dinheiro é determinante, ou tem um papel muito relativo. No seu caso parece-nos ter um papel muito relativo.

Celeste - Nunca me importei de não ter dinheiro! Quando a pessoa nasce sem dinheiro, já está habituada a não tê-lo. Quando tem, gasta-o que é para isso que o dinheiro serve. Nunca me preocupei muito com dinheiro, nem me amargura. Às vezes não tenho dinheiro para isto ou para aquilo, mas penso sempre assim: “Não tenho agora, mas amanhã fazem-me outro contrato e assim resolvo os meus problemas”. Foi sempre assim que vivi. É como os sonhos. O sonho não acabou em mim. Adoro sonhar! Esta é a melhor forma de encarar a vida.

R.C. – É uma mulher de fé?

Celeste - Não! Creio no sol, na água, no oxigénio, na natureza. E no amor! Acredito naquilo que sinto, mas não sou crente. A minha família era toda religiosa: rezava os Pai-Nossos, as Avé-Marias, as Salvé-Raínhas, antes de comer, depois de comer … Nunca senti necessidade de acreditar, de ter fé. Não tenho sentimentos negativos, nunca senti raiva de ninguém!

R.C. - Por falar na questão de não guardar rancor, é óbvio que o seu divórcio (de Varela Silva) foi bastante falado na altura. Deve ter sido muito sentido, muito doído.

Celeste - É natural, a pessoa não está à espera. Ele era uma pessoa de quem nunca tive razão de queixa! Nunca teve uma palavra desagradável, era uma pessoa fantástica, educado… Fui apanhada de surpresa. Tínhamos combinado que se um de nós se apaixonasse por outra pessoa, informava o outro, e essa combinação existia desde o início. Foi isso que me entristeceu, que me fez sentir traída. Não é preciso enganar ninguém! A pessoa apaixona-se por outra pessoa, fala com a pessoa com quem está e pronto.

R.C. - Acha que era porque também gostava de si e queria evitar dar essa notícia?

Celeste – Eu acho que não! Isso é uma defesa. Não teve coragem de se colocar numa situação desagradável, então evitou contar. Não me venham cá dizer que é para não nos fazer sofrer… Eles é que não querem sofrer!

R.C. - Ainda por cima as coisas aconteceram quando a Celeste estava fora de Portugal, o que agravou ainda mais o sentimento de traição.

Celeste - Eu fui para fora porque não havia trabalho cá. Fui sacrificar-me, estando longe dele e das minhas filhas. Quando voltei é que fiquei a saber. Se ele tivesse falado comigo, se calhar até o perdoava, mas o não ter dito nada...

R.C. - Quando o amor romântico acaba, o que continua a unir as famílias?

Celeste – É o amor que sentimos uns pelos outros. Quando um amor acaba, continua a haver amizade, o que no fundo é uma forma de amor. Eu não desligo uma coisa da outra. Os dois tipos de amor acabam por ter uma raiz comum.

R.C. - Pensando no carinho que o público tem por si, nas medalhas que já recebeu, no sucesso que sem dúvida alcançou… Como pesa tudo isto na sua balança?

Celeste - O carinho do público e as palmas é o mais importante de tudo. Nunca pensei em ter outra vida, em fazer outra escolha. Aliás, nem nesta vida que tenho vivido eu pensei! Felizmente que as coisas foram acontecendo assim, pois deu-me um nível de vida que nunca pensei ter. Não sei se tinha habilidade para outro tipo de emprego … Tem sido muito agradável viver esta vida, estou muito agradecida. Tenho conhecido o mundo e pessoas maravilhosas através do fado. Foi o fado que me deu isso.

R.C. - Acha que que existe um destino, um fado afinal, ou uma escolha aleatória que determina a vida das pessoas?

Celeste – Penso que existe um acontecer! Não sei se é o destino, eu não sou muito crente nessas coisas. Acredito que as coisas vão acontecendo. Aconteceu eu ir cantar, tornar-me fadista, o público simpatizar comigo no início, às vezes nem sei se é por causa do meu valor artístico, se por causa de gostarem de mim… Aconteceu!

Não percam amanhã a 2º parte desta partilha de emoções.