Viajar para seguir os passos de um profeta, para se encontrar a si próprio, por questões culturais ou para cumprir uma promessa. O turismo religioso e espiritual tem vindo a crescer nos últimos anos e é, cada vez mais, um fenómeno global. À beira da estrada avança um grupo de caminhantes. Uns cantam, outros rezam. Mais à frente segue outro grupo, desta feita mais pequeno, um pouco mais longe, alguém parou para descansar e aliviar os pés.

Esta é uma imagem que se repete todos os anos a partir de meados de abril. Os peregrinos que visitam Fátima entre maio e outubro e que fazem a pé todo o seu trajeto. Elevado a altar do mundo por João Paulo II, o santuário é um dos principais locais de peregrinação europeus e um dos santuários marianos mais importantes à escala global. Por ano, são cerca de cinco milhões os visitantes, crentes e não crentes, que passam pela Cova da Iria.

Em anos excecionais, como o da visita do Papa Francisco em maio de 2017, esse número sobe exponensialmente, o que demonstra bem a importância do espaço para o turismo religioso nacional. Beber água em Lourdes, tocar os muros da catedral de Santiago de Compostela, banhar-se no rio Ganges, circunscrever o Monte Kailash no Tibete e chegar à grande mesquita de Meca são alguns dos rituais.

Tal como ver o Santo Sepulcro em Jerusalém ou visitar a Basílica da Natividade, em Belém, na Palestina, são, acima de tudo, experiências espirituais, mesmo para quem não é religioso. Os crentes seguem os passos de Jesus, Buda ou Maomé, os não crentes têm uma experiência cultural ou respondem a uma busca interior. Fátima é o exemplo mais flagrante em Portugal mas, um pouco por todo o mundo, a busca da espiritualidade está, cada vez mais, na origem de muitas viagens.

Números não param de subir

De acordo com a Organização Mundial do Turismo (OMT), durante o ano de 2011, 600 milhões de pessoas realizaram uma viagem espiritual, 40% das quais na Europa. Desde essa altura, os números não param de subir. A OMT estima, ainda, que o turismo religioso seja hoje responsável por, pelo menos, 26% de todas as viagens que se fazem no mundo, com uma criação de receitas entre os 15.000 e os 18.000 milhões de euros.

No primeiro trimestre de 2017, Israel bateu todos os recordes de afluência e 2016 já tinha sido melhor do que 2015. Em 2016, o país foi visitado por perto de três milhões de turistas, uma subida de 3,6% face ao ano anterior. Na Indonésia, a avaliar pela quantidade de figuras públicas que nos últimos tempos estiveram em Bali, como é o caso da atriz Jessica Athayde e do fotógrafo Gonçalo Claro, não tem sido diferente.

Viagens que alteram a alma

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Os destinos mais procurados

Francisco Mora, entrevistado pela Saber Viver enquanto diretor do departamento de Turismo Religioso e Cultural da agência de viagens Geostar, trabalha nesta área desde o final da década de 1970 e tem vindo a assistir à evolução do mercado, que nos últimos 40 anos assistiu a uma (r)evolução ímpar. «Em Lisboa, começámos com a paróquia de Benfica, na altura com o padre Álvaro Proença», recorda o especialista em turismo.

«No início, os padres eram um pouco céticos, mas começámos a sensibilizá-los para as vantagens que haveria para as comunidades em irem para Israel, para Itália ou para a Turquia. Apesar de não haver estatísticas, diria que, em Portugal, há mais de 500 paróquias a viajar com grupos», afirma. Um fenómeno que não se resume apenas às grandes cidades. Os habitantes Martinchel, no interior do país, viajam em peregrinação todos os anos.

Além de Israel e da Palestina, visitaram Santiago de Compostela, em Espanha, antes de ir conhecer algumas das principais cidades polacas. E se, nos primeiros meses de 2014, com a canonização de João Paulo II e João XXIII, a Itália foi um dos destinos mais procurados, assim como a Polónia, Israel e a Turquia também integram a lista de preferências dos peregrinos portugueses.

O fascínio dos países improváveis

A Polónia, mais ligada a João Paulo II e ao culto mariano, Israel à Terra Santa e a Turquia a São Paulo (com as viagens apostólicas) e a São João, com o Livro do Apocalipse. A isto acresce os atrativos culturais. «A Turquia, por exemplo, tem uma oferta cultural que é única», destaca Francisco Mora. «Desde a pré-história aos nossos dias, incluindo o mundo grego e o mundo romano, além da cidade de Istambul, que é lindíssima», refere.

A estes destinos juntam-se outros mais inesperados como a Geórgia e a Arménia, ligados ao mito do dilúvio e da Arca de Noé, através do Monte Ararat. «O monte fica na Turquia, mas a melhor vista é do lado da Arménia, onde está o mais importante mosteiro arménio, cristão apostólico arménio. O Monte Ararat é um enorme fator de atração, porque são quatro mil metros que se erguem à nossa frente a partir da planície», explica Francisco Mora.

Novos pontos de atração

Em Portugal começa a despertar outro fenómeno interessante, o da valorização da herança judaica, em localidades como Torre de Moncorvo, Belmonte, Trancoso e Guarda, que entraram na rota do turismo religioso de judeus dos Estados Unidos da América e de Israel. «Os cerca de 35 mil judeus que foram expulsos de Portugal faziam parte da elite, era quem tinha dinheiro e cultura», lembra Francisco Mora.

«Essas comunidades, a elite da época, espalharam-se pelo mundo e, hoje, à exceção de Israel, as cinco maiores sinagogas do mundo são de origem portuguesa», ressalva. É a busca das raízes que traz esses visitantes, um pouco inesperados, ao interior norte de Portugal. E o aparecimento destes novos visitantes traz à boleia um novo nicho de mercado que só agora, mais recentemente, começa a despertar, o da comida kosher.

Uma viagem espiritual ou religiosa não tem sempre de corresponder à da religião de quem viaja. Nos Caminhos de Santiago, cruzam-se católicos, agnósticos e ateus e nas encostas do monte Fuji, no Japão, misturam-se adeptos do trekking e peregrinos. Há quem escolha mosteiros beneditinos para períodos de meditação. Fazer o caminho corresponde, muitas das vezes, a uma viagem interior, mesmo para quem se assume apenas como visitante.

A melhor maneira de compreender o local que se visita é mergulhar na espiritualidade do lugar. Como refere Francisco Mora, «a religião está impregnada na cultura dos povos. Não é possível estudarmos um povo, seja ele qual for, sem termos em conta a sua religião. Quem vai visitar o Egito ou a cultura pré-colombiana esquece-se, por vezes, de que tudo o que está a ver tem um carácter religioso. E quem vai à Índia e não visita um templo não vai lá fazer nada», diz.

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Os relatos de quem já fez

«Sou agnóstica, mas na primeira noite em Leon dormi num convento. Quem fazia a celebração da missa era uma freira e a maneira como ela falava surpreendeu-me. Parecia que se dirigia a cada um individualmente», relembra Isabel Falcão. A produtora de conteúdos recorda, assim, a primeira noite no Caminho de Santiago, em 1999. Ela e o marido, Nuno, percorreram o caminho de bicicleta.

Ele partiu de Saint-Jean-Pied-de-Port nos Pirinéus franceses e ela juntou-se-lhe em Leon, para fazerem juntos 500 quilómetros. «Admirei os peregrinos. À noite, descalçavam-se, injetavam o remédio para as bolhas e, no dia seguinte, seguiam, serenos», recorda. Para ela, a maior dificuldade foi a adaptação física ao esforço diário sem possibilidade de recuperação. «Todos os dias fazíamos entre 60 e 80 quilómetros», refere.

«Eram muitas horas em cima do selim a dar à perna», recorda. «Houve um dia em que tínhamos planeado ficar num determinado albergue, mas, quando lá chegámos, ao fim do dia, não havia vaga e tivemos de continuar», refere. «Os dois albergues seguintes também estavam cheios, por isso, nesse dia fizemos mais de 100 quilómetros», prossegue. «Foi um dia especial porque foi aquele em que sofri mais com dores», diz.

«Mas também o que senti o doce gosto da vitória porque a dada altura consegui fazer aquele clique mental em que deixei de sentir as dores e consegui desfrutar a viagem. Foi muito bom», assegura. Para Isabel Falcão, a experiência do caminho foi a mais importante. A chegada a Santiago de Compostela foi quase um choque. «Depois de duas semanas de silêncio, fomos confrontados com o ruído», critica.

Uma (nova) aproximação de culturas

Susana Barros também já se aventurou neste tipo de experiências. «Poder pisar o chão que Jesus pisou, para mim, foi extraordinário», confidencia. A advogada visitou Jerusalém, integrada num grupo da paróquia de Carcavelos. Católicos. Ela e o marido queriam visitar a Terra Santa, mas num contexto religioso. «Na altura não estava ligada a nenhuma paróquia em particular e, por isso, procurámos paróquias que fizessem a viagem», recorda.

A viagem a Jerusalém permitiu-lhe uma maior aproximação à cultura judaica e islâmica. «Fomos ao Muro das Lamentações e tentámos ir à grande Mesquita, mas não foi possível. Foi muito interessante estar num local, com grupos de três religiões diferentes, todos em busca do mesmo», recorda. Este é um destino que gostava de repetir. «É tão rico que não consegui absorver tudo», desabafa.

Durante a viagem aproveitou para conhecer outros pontos de Israel, como a antiga cidade de Cesareia Marítima, um dos pontos de que mais gostou. «Impressionou-me o bom estado de conservação das ruínas, através do qual se podia perceber que foi uma cidade linda e grandiosa. Impressionou-me ainda mais saber que era ali que o governador romano vivia», diz.

«Pilatos, que lavou as mãos e entregou Jesus para ser crucificado, vivia em Cesareia Marítima», recorda. Há mais tempo, Susana Barros também participou nas Jornadas Mundiais da Juventude, com o Papa João Paulo II, em Santiago de Compostela e em Cracóvia. «Também foi muito bom, mas fomos para poder estar com o Papa e iríamos quer fosse em Santiago ou noutro lugar qualquer», conta a advogada.

Texto: Susana Torrão e Luis Batista Gonçalves (edição digital)