Quando fui convidada para escrever sobre jardins que podem ser pequenos paraísos, aceitei com muito agrado. O dilema surgiu depois. Escolher um jardim! De imediato uma correnteza de nomes me invadiu. O do Bosque, o do General, o da Amoreira da Torre, o de São João, o do Carvalhal, o do Paço das Alcaçovas, o de Bom Jesus de Valverde, o de Olhos Bolidos, o de Sancha- a-Cabeça, o de Ínsua, os do palácio de Queluz, o dos marqueses de Fronteira, o Jardim Gulbenkian, o das Casas Pintadas, o do Azulejos e tantos outros… Não interessa se estes jardins que enumerei e os muitos mais que não referi se situam a norte, a sul, a este ou a oeste de Portugal.

A avalanche de nomes que me surgiu não se prendia com a sua localização geográfica nem com a memória que fica de algumas viagens que a vida nos proporciona. Àqueles nomes associam-se sensações, vivências, permanências e distensões felizes plenas de sons, aromas, sabores e envolvências. Todos aqueles paraísos me ofereceram um tempo de felicidade, de harmonia e de reposicionamento no mundo, resultante da combinação habilidosa, sábia que o homem construiu a partir da água, da vegetação, do solo, do tempo e da luz.

Com estes simples elementos, o homem inventou um espaço de felicidade. Fundou um templo, um lugar sagrado (ordenado e organizado) prazeroso. Com as características biofísicas dos elementos naturais construiu uma casa, um aconchego, um espaço de re-ligação entre o homem e a natureza. Em alguns daqueles jardins, a adjetivação plástica modelou os elementos naturais configurando o espaço de acordo com o espírito do tempo. Mas todos, através da simplicidade e riqueza que são próprias a cada dos seus constituintes, me ofereceram graciosamente.

Os sons e os cheiros que transportam para outras paragens

O som da água que corre, do silêncio do meio-dia e das vozes longínquas que nos falam de um mundo que fica lá fora. O canto das árvores, do vento e das aves. O aroma fresco dos citrinos, adocicado da tília, da glicínia, da madre-silva, do jasmim, das flores discretas de uma videira. O aroma vivificante da terra molhada, da erva cortada e do amanhecer. O sabor refrescante da hortelã, doce da violeta, azedo de uma laranja roubada às escondidas.

Também os meus olhos se alimentaram, em todos estes paraísos, da luz que cintila no copado da árvore, na quietação ou na revolução da água e que desenha um outro jardim no jardim, com o próprio jardim. Também me alimentei da cor que não deixa de ser luz mas agora transformada. São momentos simples e felizes, em constante evolução que o homem e os elementos naturais constroem.

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O jardim do deslumbramento

Mas há um jardim, não sei se é o jardim da minha vida, mas sei que ele me revisita frequentemente. Apenas o fruí num fim de tarde, num início de verão, hora mágica por excelência. Nunca mais lá voltei nem sei se ele ainda existe. Mas colou-se ao meu corpo pelo deslumbramento que me provocou. Esconde-se numa prega de relevo, nas arribas fronteiras a Lisboa, na outra banda. O acesso não é fácil. Para lá chegar, atravessam-se bocados de cidade, contentores urbanos. A estrada desce em direcção ao rio. Cruzei-me com camiões, que anunciam a proximidade de uma zona portuária.

Afastei-me da cidade-contentor e da estrada poeirenta. Embrenhei-me na dobra do relevo que guarda este paraíso. Uma porta, um pátio, uma casa nobre mas simples. Uma outra porta abre-se para um dos terraços que se esculpem no vale encaixado, virado a uma luz poente, onde laranjeiras, flores e arbustos vários, água, casas de fresco constroem espaços mágicos. Não me recordo do nome desta quinta, não me recordo da presença de elementos escultóricos, não me recordo da forma do espaço.

Nada sei da sua história nem sou capaz de enumerar o seu elenco vegetal. Mas recordo como todo o espaço se apresentou como algo coeso entre o fazer humano e o lugar onde se construía. A localização criteriosa, tirando partido do melhor solo, da maior disponibilidade da água, protegendo-se do vento mas desfrutando das brisas de encosta e da humidade benfazeja que no fim do dia ascende docemente, numa escala intimista, aconchegante, numa associação feliz entre elementos vivos e inertes.

Todos estes atributos constroem um espaço e um tempo mágicos. Tudo está certo. E à nossa memória emergem as palavras de Sofia de Mello Breyner. «Então as horas/Afastam-se estrangeiras/Como se o tempo fosse feito de demoras»... O objetivo da visita era preencher uma ficha de inventário. Não o fiz. O lugar impunha-me silêncio, obrigava-me a vivenciá-lo mais do que a olhá-lo objetivamente. Parei. E o jardim foi-se tatuando em mim, devagar, silenciosamente como a luz de Lisboa que, ao longe, suavemente se ia atenuando…

Texto: Aurora Carapinha (arquiteta paisagista e professora na Universidade de Évora)