Há nos cogumelos um mistério que nos atrai. São efémeros, deliciosos mas também perigosos, até mesmo mortais. Eclodem nas sombras da floresta, alimentam o nosso imaginário, revestem-se de formas e de cores únicas na natureza. Não possuem raízes nem folhas. No fundo, o que levamos ao prato quando degustamos, por exemplo, um arroz de cogumelos, não é mais do que o resultado da frutificação de alguns fungos. Um “não é mais” que muito tem para contar. No mundo há dezenas de milhares de espécies de cogumelos e a sua curta vida reveste-se de factos singulares. Em Portugal, um cantinho da Beira Interior, no concelho do Fundão, torna-se entre novembro e o início da primavera algo a que podemos chamar como reino encantado. Nos bosques de carvalho, castanheiro, pinheiro, entre outras castas vegetais, eclodem perto de duas centenas de espécies de cogumelos.

Fundão: A maior festa nacional dos comeres com cogumelos regressa à aldeia de Alcaide
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Caminhamos na vertente norte da Serra da Gardunha, a meia encosta entre o largo vale, a Cova da Beira, e o pico da montanha. Com o final de outubro as sombras do bosque, húmidas e tépidas, tornam-se o pasto ideal para a eclosão dos cogumelos, não só no solo, como também nos troncos das árvores. José Matos, ex-comissário de bordo da TAP, acompanha-nos numa saída micológica. Um apaixonado e especialista em cogumelos que há pouco mais de uma dezena de anos pouco ou nada conhecia acerca deste “quarto reino, depois do animal, vegetal e mineral”, como nos explica.

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A diversidade de espécies de cogumelos identificadas no concelho do Fundão.

José Matos associa-se todos os anos à festa que anima a aldeia de Alcaide no concelho do Fundão. A terra ganha em novembro novo estatuto, torna-se a “Aldeia Cogumelo” e faz desta marca motivo para o festival “Míscaros”. Localidade com pouco mais de 500 habitantes, recebe até 30 mil visitantes no decurso do festival, segundo dados da autarquia. Esgrime bons argumentos; com as tasquinhas improvisadas pela própria população e onde se provam produtos locais, com a animação de rua, onde atuam grupos de bombos da aldeia de Lavacolhos, com apresentações culinárias e saídas de campo.

Nos cerca de 20 hectares da sua propriedade, a Quinta Vale D'Encantos, José Matos chega a identificar perto de 160 espécies de cogumelos. Volvidos 14 anos de vida no Fundão, o especialista ainda se surpreende com o que descobre. “Quase todos os anos encontro espécies novas”, sublinha enquanto calca o terreno húmido com uma longa vara. Um bordão que é boa ajuda na hora de arrebitar o chapéu de um míscaro escondido na folhagem seca. José Matos obriga-nos a acelerar o passo nestes caminhos exigentes.

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Escutamos: “todos os cogumelos têm toxinas, algumas desaparecem com a cozedura, outras não”, explica o nosso guia, para sublinhar o aviso que fez no início da caminhada: “na dúvida não recolha cogumelos silvestres”. Uma advertência com todo o sentido. No chão, entre os nossos pés, estão dois pequenos exemplares de Amanita phalloides. Em Portugal também os conhecemos como “cicuta verde”. “Veneno puro”, adverte José Matos, “são responsáveis por 90% das mortes por ingestão de cogumelos”. Um grama deste cogumelo mata uma pessoa. Ainda na categoria dos cogumelos potencialmente perigosos, deparamo-nos com um que de inocente tem só o currículo que deixou nas histórias de encantar. O Amanita muscaria, de chapéu vermelho e pintinhas brancas deve ficar apenas no cesto das histórias da carochinha. Curiosamente, como nos diz o nosso interlocutor, “as lesmas comem a muscaria e não morrem. Infelizmente ainda não se conseguiu descobrir o seu antídoto”. Noutro sentido e de acordo com José Matos, “três estudantes da Universidade do Porto conseguiram desenvolver uma antitoxina para o Amanita phalloides. Já foi testada em animais. Deviam receber o Prémio Nobel da Medicina”. O especialista lança a frase com ar grave. Não há sorrisos.

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Puro veneno. À esquerda um Amanita Phalloides, alguns gramas são o suficiente para matar um ser humano adulto. À esquerda um Amanita muscaria, altamente tóxico.

Um risco para a saúde pública que não se coloca neste Festival como sublinha Paulo Fernandes, presidente da câmara municipal do Fundão. “Todos os cogumelos servidos à mesa, sejam míscaros, frades, boletos ou sanchas, são inspecionados por autoridade alimentar, antes e durante o festival. Acresce que uma parte substancial dos cogumelos que podemos degustar no decorrer do festival, nos arrozes, nas feijoadas, grelhados, em sopas, provêm de cultura, são adquiridos junto de empresa certificada”.

Para os olhos experientes e treinados de José Matos não é difícil descortinar nas sombras do bosque as espécies de cogumelos. Fá-lo, aliás, amiúde. “Ali temos um Agaricus campestris, é comestível”. Mais à frente, “um Lepista nuda, reparem na cor lilás. É comestível e com um excelente sabor. Em França pode atingir os 30,00 euros o quilo. Mas atenção o Lepista inversa já não é comestível”. Meia dúzia de passos depois: “este, o Lactarius deliciosus também chamado abóbora-menina pode ser conservado em azeite. É muito bom à mesa”. José alerta-nos para um belo exemplar de Trametes versicolor, “antigamente era usado pelos chapeleiros para produzir elementos decorativos, a simular flores, para os chapéus das senhoras. Depois de seco dura anos”.

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Ecossistema em perigo

Uma saída de campo com este especialista é muito mais do que um passeio de cestinho no braço. José Matos é também um ecologista e um pedagogo. “Temos três grupos de cogumelos, os que consomem matéria orgânica morta (sapróbios), os que criam uma relação de parasitagem, consumindo outros seres vivos como as árvores”. Numa região rica em cereja, esta categoria de cogumelo pode ser particularmente danosa. “Quando nascem próximo de uma cerejeira a árvore morre ao fim de dois anos”. Há, ainda, aquele outro grupo de cogumelos que gera uma relação de simbiose com algumas plantas (micorrízicos). “Estes últimos fornecem à árvore azoto e recebem desta clorofila”, esclarece o ex-comissário de bordo.

José Matos alerta-nos também para os perigos que grassam sobre estes cogumelos da Gardunha. “Todos os anos temos na região multidões de apanhadores que não têm o devido cuidado com a floresta. Destroem o solo onde se desenvolve o micélio [massa de ramificações que podemos comparar às raízes das árvores] que garante a nova geração de cogumelos. Tal como outras atividades esta deveria ser licenciada”. Uma questão também abordada pelo autarca do Fundão: “é frequente os cogumelos serem vendidos a intermediários de Espanha e de Itália a um preço que chega a ser dez vezes inferior ao que custa nesses países. Esses cogumelos são depois revendidos com uma margem enorme”. Acresce que uma substancial fatia dos cogumelos recolhidos sai do nosso país. É um negócio potencial que se perde.

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José Matos, um incansável divulgador do património micológico da Gardunha. Aqui, no decorrer da saída de campo na sua propriedade a Quinta Vale D'Encantos.

Para colmatar alguns destes problemas foi inaugurado em Alcaide este 2016, no decorrer do “Míscaros”, o Centro de Recolha do Cogumelo. Um espaço instalado numa antiga escola primária que visa organizar toda a fileira local, “concentrando os recolectores, atraindo compradores e garantindo a segurança alimentar”, referiu o edil. Isto num negócio com valores a não desmerecer.

Cogumelos caseiros

Antagonizando com os silêncios da Gardunha está o bulício que durante três dias se instala na pacata Alcaide. Aqui percebemos o impacto deste festival em torno dos míscaros. No largo central da aldeia, epicentro de toda a festa, resume-se a essência do folguedo. Meses de trabalho das crianças e adultos culminam, em novembro, em festa rija entre casario de pedra rude e de feição tipicamente portuguesa. A decoração tem tanto de ingénuo como de atrativo.

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Há, entre pequenos e graúdos, a preocupação de reciclar materiais. Tigelas funcionam perfeitamente como gigantes cabeças de cogumelos. Bastam umas pinceladas de tinta branca para lhes acrescentar algumas pintinhas. Por estes dias garagens e espaços devolutos regressam à vida. Tornam-se tascas improvisadas de portas abertas para a rua. Dezenas de recantos de convívio geridos pela população. Não faltam os petiscos regionais, sabores caseiros onde, há míscaros à prova, mas também onde se degusta um belo galo em vinho tinto, uns grelhados na brasa, um caldo verde com boa couve. Nas ruas estreitas que desembocam invariavelmente em pequenas hortas, vagueia o fumo dos braseiros improvisados. Novembro já traz friagem a estas terras à beira da grande Estrela. Sabe por isso bem recolher à arena coberta que serve de casa às demonstrações culinárias e workshops integrados no festival.

 

Saibam todos aqueles com pouca paciência, tempo, ou vontade de se embrenharem na floresta que no remanso das suas casas podem compor um “jardim” de cogumelos. Isso mesmo nos explica Norberto Costa, produtor responsável pela empresa Aromas e Bolotas, num mini curso sobre a criação de cogumelos em troncos e substratos. No primeiro caso vamos precisar, como explica o empreendedor, “de madeira proveniente de espécies não resinosas. Pinheiro está posto de lado, vale a utilização, por exemplo, do eucalipto, castanheiro, carvalho”. Norberto Costa faz-nos uma demonstração ao vivo. Com uma broca executa furos certeiros ao longo do tronco, separando-os 20 cm. Nestes buraquinhos entra o micélio [que está inserido numa espécie de cunha] usando para o efeito um martelo com cabeça de borracha. “O micélio irá contaminar a madeira quando lhe alterarmos os parâmetros de temperatura e humidade”. Depois, há que cuidar e mimar. “O tronco deve ser vaporizado com água uma a duas vezes por dia. Quando surgem as primeiras ´bolotas`, mergulha-se o tronco 24 horas em água. Retira-se e dentro de um mês irão frutificar os cogumelos”. Feita a recolha o processo recomeça naturalmente. A produção prolonga-se até três anos.

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Cogumelos cultivados em substrato vegetal.

Já em substrato, os cogumelos podem vingar em palha, serradura ou borras de café. Neste caso vamos assistir ao cultivo em palha. “O micélio foi introduzido em grão de trigo. Tira-se a palha para fora do saco e misturam-se as sementes”. Volta a palha ao saco e durante 20 a 30 dias descansa num ambiente escuro.

No final do processo sabe o produtor caseiro de cogumelos que vai ter deliciosa matéria-prima para levar ao tacho. Disso mesmo, do sublime sabor dos cogumelos, faz prova o chefe Leopoldo Calhau. Leopoldo dá-nos a provar alguns petiscos, como a orelha de porco cozida, acompanhada de cogumelos em pickles e cebola frita. Não faltam uns “peixinhos do curral”, aqui numa reinterpretação dos tão portugueses “peixinhos da horta” mas onde não cabe o feijão-verde, sendo substituído pela orelha de pouco temperada com flor de sal e pó de mostarda. A acompanhar, claro, uns cogumelos. Um abrir de apetites para um apaladado Arroz de Míscaros do Fundão: corte 200 g de míscaros em pedaços. Deite 0,5 dl de azeite e 30 g de margarina num tacho de ferro, ou de barro, e leve ao lume com 2 dentes de alho esmagados. Deixe estalar, junte meia cebola picada e fica a cozer suavemente até a cebola estar macia. Adicione meia chouriça do Fundão, cortada em cubos, aumente um pouco o calor e deixe alourar bem a cebola. Introduza 250 g de arroz carolino e os míscaros e mexa para este absorver a gordura. Regue com meio litro de água a ferver. Tempere com pimenta e retifique de sal. Introduza o tacho no forno já quente, a 225 ºC, e deixe cozer durante 15 minutos. Na altura de servir polvilhe com salsa picada. Bom proveito.

O “Festival do Cogumelo” é organizado pela Liga dos Amigos do Alcaide em parceria com a Junta de Freguesia do Alcaide e com a Câmara Municipal do Fundão.

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Praça central da aldeia de Alcaide.