Do fundo do mar subiram os vulcões em lava. Ergueram-se paredes negras misturadas com pedras lançadas por gazes mortais e densos fumos pretos. Pelo meio de braseiro e de fogo, romperam o mar, lançando-se para o céu. E neste movimento brutal do fundo da terra, travaram na sua ascensão feroz, impressionante. Pararam. Fizeram-se as ilhas. Depois, a lava mortal voltou aos fundos, as paredes de basalto fixaram-se, sólidas, na vertical.

E a cratera ficou aberta, redonda, parada, enchendo-se da água que as nuvens trouxeram. O vulcão voltou para o fundo do mar e deixou para trás uns penachos de fumo e uma lama branca que borbulha e fumega, permanecendo connosco a inquietação de que um dia pode voltar. É desta insegurança, aumentada pelas brumas que desvendam uma paisagem vertical para logo a seguir a fecharem em cinzentos húmidos.

É deste movimento incessante e palpável das forças da Natureza que nos vem uma emoção profunda, antiga, mistura de apreensão e entrega. De Hickling a António Borges e José do Canto, faça uma viagem pelos jardins mais antigos e mais emblemáticos da ilha de São Miguel, como é o caso do Parque Terra Nostra, uma das principais atrações turísticas da ilha, que pode ver nesta galeria de imagens.

Amor à primeira vista

Dentro da cratera, defendida dos ventos ferozes do grande oceano, a vegetação cresce maravilhosamente e as negras paredes de lava e os bordos da lagoa foram-se enchendo de verde. Dois homens grandes fizeram os seus jardins numa destas lagoas. Hickling, em 1770, num entusiasmo de amor à primeira vista, deixa a sua assinatura junto das fumarolas do vale das Furnas e compra dois hectares de terreno para construir uma casa, um tanque e um jardim.

Na ponta sudoeste da lagoa, em 1852 é então que José do Canto inicia o seu parque, tentando primeiro uma reflorestação das encostas. Depois, avança para um parque com projeto assinado por um paisagista de Paris e termina, finalmente, escolhendo o local para a sua eternidade com uma capela neo-gótica de pedra encarnada que se reflete na água verde e clara da Lagoa das Furnas.

O jardim de Hickling foi aumentado pelo Marquês da Praia e pelo seu paisagista Milton e até hoje foi sendo bem mantido pela família Bensaúde, proprietária de vários hotéis locais, que o comprou em 1936, trazendo o jardineiro Mc Enroy cujas plantações de grandes árvores fazem hoje a beleza do parque, ligado ao hotel e conhecido por Parque Terra Nostra, que também pode admirar nesta galeria de imagens.

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O jardim privado que estava sempre aberto

Desde a sua origem o jardim, sendo embora privado, estava sempre aberto aos visitantes que se divertiam no lago de águas amarelecentas, a remar, a pescar e/ou a nadar. A porta da casa estava também sempre aberta e o diário da filha de Hickling conta-nos como qualquer pessoa, tal como em Boston, nos EUA, donde o seu pai vinha, podia entrar a gozar a quinta num acolhimento importado dos costumes do novo mundo.

Vale a pena ouvirmos as descrições de Raul Brandão, que datam de 1926, sobre este parque, então meio abandonado e despertanto nele sentimentos ainda românticos, como se ali tivesse mergulhado no século XIX. «Um regato passa pelo meio do parque cortando-o de vozes e murmúrios. Entranho-me nos troncos, ouvindo a areia ranger sob os pés; quedo-me junto da poça cor de ferrugem», escreveu.

«Meto pelo carreiro que vai abrir numa rua de palmeiras com a flor a meio do tronco em forma de candelabro, e repouso nas sombras fechadas onde não penetra o sol , ouvindo os pássaros a cantar... Tenho diante de mim outro lago serpentino com fios verdes de plantas estendidas à superfície como cabelos. Nesta água que reflecte o azul das hidrângeas, as linhas de fetos com minúcia, os troncos erguidos em colunas, os efeitos de luz são extraordinários», continuou.

«Bebe todos os tons, reproduz todas as côres (...) Tomo a ponte de pedra, ao pé das grandes árvores derrocadas. Ao lado do talude rompem camadas de fetos silvestres e um jacto de fetos arbóreos. Quando o parque está vazio, a descoberta do verde, o encanto da vegetação húmida é ainda o mesmo, mas em vez da areia por baixo dos passos sentimos a bagacina, pedaços pequenos de pedra pomes que o vulcão expele e serve para cobrir os caminhos», concluiu.

A obra de José do Canto

José do Canto era um homem de dimensão europeia mas sempre com um enorme apego à sua ilha. Nela construiu dois grandes parques nos quais aplicou o seu grande conhecimento botânico e paisagístico. Um em São Miguel, do qual o enorme Ficus, só por si, justificaria a visita. O outro é o Parque da Lagoa das Furnas, que foi a sua última obra, nos 600 hectares por onde se estendia. Hoje são 100 hectares.

Cobrindo as escarpas da cratera, foi plantando cerca de dois milhões de árvores por ano tendo introduzido mais de mil novas espécies nos seus parques e ao longo da sua vida. O resultado atual não poderia ser mais surpreendente. Todas estas exóticas pegaram e cresceram, por vezes até demais, mostrando que nos Açores o clima é melhor para plantas e para a vegetação do que para homens.

Deschamps, chefe dos parques e jardins de Paris, foi chamado a desenhar o parque de José do Canto e deixou o seu traço nos caminhos que se desenrolavam em grandes curvas na margem da lagoa. Hoje podemos visitar o parque, com autorização dos herdeiros de José do Canto. Continuam perfeitamente atuais as descrições de Raul Brandão... «O parque [José do Canto] que foi o sonho deste homem que proibiu que lhe tocassem até à terceira geração», escreveu.

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O poder de sedução da ilha

A ilha seduziu Raul Brandão. «Entra-se num grande subterrâneo onde a luz através das copas cerradas mal se coa. Árvores tropicais, árvores de todos os climas e de todos os países, o ficus o metrosiderus, a camélia e variedades de palmeiras vivem numa meia sombra lívida», escreveu. «As azáleas [que existem no jardim] são enormes e há sítios em que o parque é inextricável como uma floresta virgem», descreveu.

«Meto-me com emoção num vale de fetos por uma ruazinha verde, misteriosa... Há-os de todas as qualidades e feitios», prosseguiu o escrito, num relato repleto de pormenores visuais que remetem para o paraíso verdejante que a ilha, na realidade, é. «Dou uma volta e subo para ver de alto as folhas delicadas. Só o verde enche o mundo como se o mundo pertencesse aos vegetais», disse.

Ainda assim, é preciso ir preparado. A visita ao parque é assim feita de subidas íngremes, taludes de musgo e copas altas de árvores de toda a espécie. Raul Brandão não reparou nas sequóias que cresceram mais 100 anos e ali parecem querer viver mais uns mil. Se mais nada houvesse na ilha, só o vale das Furnas e os seus parques mereciam a visita a São Miguel. Felizmente, as atrações turísticas não se ficam por aqui.

A magia da Lagoa das Sete Cidades

A chegada ao cimo da cratera das Sete Cidades fazia-se de burro e de olhos vendados. A surpresa era então total. Não admira, por isso, que um dos miradouros tenha recebido o nome de Vista do Rei. Duas crateras divididas por uma fina península e sendo uma azul e uma verde? «Pela primeira vez da minha vida não sei descrever o que vejo e o que sinto. Conheço os lagos voluptosos de Itália e os lagos adormecidos da Escócia», revelava.

«O lago das Sete Cidades não se parece com nenhum que tenha visto (...) Começo a reparar em pormenores. Dum lado a lava abriu sulcos na encosta, lavrada de alto a baixo (...) Sombras de nuvens viajam sobre as águas e entranham-se em poeira verde num lago e no outro em poeira azul ao mesmo tempo que o verde das escarpas se derrete pouco a pouco nas águas», descrevia o escritor.

É na linha de separação das duas lagoas que existe mais um jardim do século XIX, agora de António Borges, um coleccionador de pintura que se serviu do cenário natural da lagoa para pano de fundo do seu jardim onde deixou túneis de camélias, plátanos de troncos retorcidos e, sempre a espreitar por perto, o verde e o azul das lagoas. Um cenário de rara beleza que atrai anualmente milhares de visitantes.

Também este mecenas tinha um jardim em Ponta Delgada, a capital da ilha. Um espaço que hoje pertence à câmara municipal local e que foi, nos últimos anos, restaurado e melhorado, pondo em evidência as grutas românticas de pedra vulcânica e os fetos e o musgo que por lá crescem, fazendo o deleite dos paisagistas daquela época e oferecendo-nos a nós, hoje, uma viagem ao passado.

Texto: Cristina Castel-Branco com Luis Batista Gonçalves (edição online)