Recentemente foi organizado em Lisboa um jantar que recriou uma das mais deslumbrantes celebrações gastronómicas da história da literatura e do cinema, “O Festim de Babette”. O evento foi inspirado no filme realizado por Gabriel Axel, que havia sido baseado no romance de Isak Dinesen (pseudónimo da Baronesa Karen Blixen, a mesma de África Minha), e que conta a história de um grande jantar saboreado nos finais do século XIX numa pequena aldeia protestante dinamarquesa da costa da Jutelândia, local tão longe da civilização quanto seria possível encontrar na Europa daqueles tempos.
A aldeia é informalmente liderada por duas doces irmãs solteironas, filhas de um emblemático, e já falecido, pastor protestante. A meia dúzia de almas que ali vivem parecem ter parado de viver, limitando-se a vegetar ao sabor do vento que assola permanentemente esta inóspita região. A comunidade é dominada por uma religião castradora, espartana, onde os desvios à monotonia do quotidiano são vistos como obras do Diabo.

Um dia, a rotina é quebrada pela chegada de Babette, uma jovem francesa que ali aparece com uma mala de viagem e pouco mais. Babette por lá fica, cozinhando para as irmãs, durante 14 anos, sem qualquer ligação à sua vida anterior para além de um bilhete de lotaria que um amigo renova anualmente em Paris. Um dia Babette descobre que ganhou o primeiro prémio, 10.000 francos, e decide gastar a fortuna num grande jantar de agradecimento à comunidade que a acolheu, aproveitando a ocasião do 100º aniversário do nascimento do pastor pai das suas patroas.
O jantar, solene como uma celebração eucarística, foi recebido com desconfiança pelos conservadores aldeões, que se foram soltando à medida que os pratos desfilavam à frente dos seus olhos e que os sabores exóticos e quase eróticos explodiam na sua boca.

À medida que o jantar se desenrola os convivas vão-se soltando, experimentando um prazer que durante tanto tempo foram levados a reprimir, e conseguindo até sarar velhas feridas e desavenças pessoais. No final, Babette revela que tinha sido Chef de cozinha no restaurante mais famoso de Paris, o “Café Anglais”, que tinha abandonado por um desgosto de amor uns anos antes, tendo escolhido a pequena aldeia perdida para esquecer a vida que deixara para trás.
O filme traça um paralelo irónico entre aquelas vidas vazias e austeras, dominadas por uma religião de rígidos costumes que anulava quaisquer deleites mundanos, e o prazer extravagante que a mesa nos oferece quando é elevada ao nível de arte. No jantar de Lisboa o festim preparado pelo Chef respeitou totalmente as receitas originais (excepto a sopa de tartaruga, animal em vias de extinção), os rituais de serviço e os vinhos servidos nesse mítico jantar, algo que nunca tinha sido feito em Portugal. O jantar teve ainda a presença de José Bento dos Santos, que apresentou a história e as estórias por detrás de cada ingrediente e de cada vinho.

O menu, para o prazer dos vossos olhos, foi o seguinte:
 Como uma «Potage a la tortue», Jerez Amontillado
- Blinis Demidoff au caviar Ossetra, Champagne Veuve Clicquot Vintage 2002
- Salada
- Caille en sarcophage avec sauce Perigourdine, Clos de Vougeot 2000
- Prato de queijos
- Baba au rhum avec les figues, Dow’s Vintage 2007

Ainda que provavelmente os meus queridos leitores não venham a ter a oportunidade de provar estes pratos e vinhos em vida (eu esperei mais de 20 anos mas realizei esse sonho), não deixem de ver o filme, porque é uma das obras de cinema mais encantadoras da história da sétima arte.