Vista a partir do sopé do monte Fuji, a paisagem é deslumbrante. Desta vez, penetrámos num Japão mais profundo, mais escondido, longe daquele que muitos turistas que visitam o país procuram. Começámos por um contacto real com a religião budista, a vida dos padres nos templos, as estalagens para os fiéis, os caminhos pelas montanhas até se atingirem os pavilhões onde decorrem os serviços e cerimónias e onde chegam, depois de longas subidas, os peregrinos.

As caminhadas nas montanhas são sempre uma ascensão espiritual. Mas aqui os templos concentram a subida num clímax religioso e transformam em experiência mística a emoção da paisagem, o esforço físico da ascensão e o longo contacto com a natureza. Fomos à descoberta dos santuários japoneses, caracterizados pela harmonia e pelo total respeito pela natureza.

No templo de Hase-dera, que exibe um buda de madeira de 11 metros que foi reconstruído pela oitava vez no século XVII, nas montanhas de Koya-san, um dos pontos de passagem desta visita, ressalta a pureza e a proximidade da natureza. Qualquer construção humana se deixa penetrar por ela. As árvores centenárias saem junto às pedras funerárias que nos acompanham ao longo de uma infinita subida em escadaria de pedra ladeada de terraços de peónias.

A composição é insólita, mas no Japão a surpresa é permanente. Quem se lembraria de misturar peónias com campas? Só que eles devem ter razão. O efeito, quando em abril de cada ano florescem os 3.000 pés de peónias em pequenos terraços a acompanhar a escadaria, deve exceder tudo.

A montanha dos deuses e o santuário de Omiwa

A composição visual da montanha sagrada onde vivem os deuses revela-se uma obra bem mais perfeita que a conseguida pelos melhores dos paisagistas ingleses ou dos românticos alemães. Os pavilhões dos templos podem ver-se a partir uns dos outros com os seus telhados arrebitados (nagarezukuri) a sair do verde escuro das encostas florestadas. A natureza é aqui tão fértil que não se estranha a presença muito próxima das divindades, e assim passamos para o shintoísmo.

É uma religião autenticamente japonesa, em que se celebra o mar, se veneram as velhas árvores, se ornamentam os rochedos com cordas, e se apela aos deuses (kamis) da montanha. Entramos no santuário de Omiwa, o mais antigo santuário do Japão. Descalços sobre as traves de madeira longa e suavemente gastas, passamos para um pavilhão aberto de teto baixo e painéis de papel recolhidos, enquadrando a vista lá para fora.

A mesa das oferendas, os instrumentos de música, os bancos e mesinhas com objetos de culto fariam esperar uma cerimónia centrada num padre. Mas não... O altar do templo, o local sagrado, antecedido por um gradeamento em madeira, é a própria floresta e é para lá que olhamos enquanto decorre a dança de purificação, renovação e revitalização que está na essência do Shintoísmo, em que tivemos o privilégio de participar.

Com os milhares de deuses que vivem na natureza falamos nós, chamando-os com duas palmas e despedindo-nos deles com uma vénia. Mas a grande peregrinação ainda estava para vir. E foi preciso ir até Shizuoka, perto do mar, para ver a grande deusa que se esconde nas nuvens.

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A peregrinação à montanha Fuji

Peregrinamos, de seguida, à montanha Fuji, imponente vulcão adormecido há 300 anos, quase dócil sob um leque de neve no inverno. Mal se deixa ver no verão, surgindo de repente, negra no meio de nuvens que a escondem logo a seguir. A subida à montanha Fuji, agora só permitida de 1 de julho a 31 de agosto, é para os japoneses o verdadeiro encontro com a deusa Asama-no-ohkami. Por isso, o percurso é marcado por oito estações de purificação e oração.

Começa num pinheiro sagrado, retorcido por 600 anos de debate com o vento, na praia do pinhal de Miho. Daqui, do mar, vê-se o pico enorme, com 3.776 metros, muito próximo. E aqui começa a peregrinação que passa por templos e santuários até começar a subida íngreme sobre a lava negra coberta aqui e ali por vegetação pioneira.

No santuário Shintoista de Fuji san Sengen Taisha, mandado reconstruir e aumentar pelo Shogun Ieyasu, em 1604, diz-se que a neve que cai no pico do Fuji é absorvida pelas pedras e demora, depois, trinta anos a aparecer nas nascentes que formam o límpido lago Wakutama do santuário. São águas que acalmam os deuses adormecidos das lavas, são águas onde os peregrinos se purificam, e para onde jorram as pequenas fontes donde se bebe em caços de bambu.

As espécies botânicas que estimulam o pensamento

Milhares de peregrinos e visitantes passam junta ao lago onde as carpas nadam e os patos mergulham e tudo funciona com suavidade e total respeito pela natureza. Fiquei curiosa e com vontade de ver florir a glicínia quando chegar a primavera. Montada sobre uma pérgola de bambu, cujos suportes saem da água, imaginei-lhe os cachos brancos roxos ou amarelos, em reflexos soberbos na superfície quebrada da água do lago.

Em abril, o santuário transforma-se em cor de rosa, com 1.500 cerejeiras, espalhadas pelo recinto a entrarem em floração. Espero um dia poder vir vê-las… À noite, as lanternas de pedra numa encosta da floresta acima do lago são acesas e refletem-se no lago, truque de luzes e reflexos que revela a sabedoria japonesa para desenhar jardins.

As lanternas fazem efeitos que, na minha primeira vinda aos jardins do Japão, tinha desatentamente ignorado fascinada como fiquei com tudo o resto. E funcionam muito bem em pequenos espaços e nos grandes, quando se pode compor com água e esperar pelo reflexo da noite. O resto da subida até à quinta estação, que marca o início da zona sagrada da montanha Okumiya, foi feita de autocarro.

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O trilho que pede para ser percorrido

Algures pelo meio de floresta densa de criptomérias, começa um trilho que se pode subir com paragens em recintos cada vez mais sagrados e preparados para práticas ascéticas. O objetivo é chegar aos oito picos sagrados, onde os toris, pórticos que marcam a entrada, se recortam no céu e assentam no plano inclinado da lava negra. Um verdadeiro bálsamo para o espírito!

Como seria bom aprender estas lições milenares para chegar ao cimo da Serra da Estrela. Chegar à Torre sem ter que ver no horizonte recortada a silhueta trivial de camionetas, as montanhas em redor interrompidas por construções banais, tornando impossível qualquer experiência estética ou espiritual… E as saudades que eu já tenho daquelas paisagens!

Texto: Cristina Castel-Branco (professora de arquitetura paisagista)