Os sons de 14 milhões de almas assaltam-nos assim que o navio atraca no centro de Istambul, não muito longe da Praça Taksim. Istambul, a “cidade de harmoniosos contrastes” recebe-nos com a indiferença com que um gigante recebe uma formiga. Mas rapidamente a indiferença se transforma em hospitalidade, à medida que um fascínio inesperado nos começa a dominar.

Somos cativados por uma sensação de segurança, como se não fosse a primeira vez que percorressemos estas ruas, como se não nos fossem estranhas as vistas sobre a água que corre do Negro para o Mediterrâneo. Decididamente, a cidade é-nos familiar. Será das colinas banhadas pelo sol, dos eléctricos que chiam por entre carris paralelos, dos vendedores de rua que berram pregões ininteligíveis? A sensação de “déjà vu” é evidente. A razão poderá residir nas inúmeras semelhanças que a cidade dos sultões otomanos tem com Lisboa, e que faz com que nos sintamos em casa. O sorriso franco e hospitaleiro dos turcos, tão bem-vindo quanto inesperado, faz o resto e rendemo-nos à cidade.

Uma cidade-monumento

As maiores atracções de Istambul são produto da extravagância dos sultões do império otomano. Senhores da cidade desde o século XV, quando vindos das estepes da Anatólia Central conquistaram a bela Bizâncio aos gregos, os otomanos souberam dar novos mundos ao império turco. As riquezas que as suas tropas recolheram em pontos tão distantes como o Líbano ou a Áustria, afluiram a Istambul, tornando-a um dos centros do mundo antigo. Os sultões não olharam a meios para demonstrar o seu poder divino. Ergueram mesquitas com minaretes apontados a Alá, palácios com centenas de quartos que escondiam no seu coração haréns e outros locais proibidos, monumentos e parques imensos. A opulência com que viviam tornava-os distantes dos humanos e próximos do seu Deus, de quem eram os representantes na Terra.

Mas a história de Istambul não foi um monólogo de sultões, mas antes uma epopeia, uma aventura trágico-marítimo-terrestre, uma peça teatral secular e monumental, onde otomanos, judeus, cristãos e ortodoxos desempenharam o seu papel. A conturbada mas também colorida história da cidade começou algures no século VII antes de Cristo, quando Byzas, um herói semi-mitológico, fundou Bizâncio no local onde mais tarde foi edificado o Palácio de Topkapi. Desde essa data, a cidade contribuiu mais para a História Universal que muitos países. A cidade chamada Stamboul foi oficialmente fundada em 326 depois de Cristo, tendo sido rebaptizada como Constantinopla pelo narcisista Imperador Constantino, de Roma. 

A cidade de Constantino foi crescendo, transformando-se numa das mais magníficas metrópoles do mundo, capital da cristandade e uma encruzilhada entre o Oriente e o Ocidente. A sua importância comercial e militar tornou-a uma saborosa presa para os potentados europeus e asiáticos, que sob pretextos religiosos a atacaram e pilharam por diversas vezes. Istambul foi uma das cidades que por mais vezes sofreu cercos. Os exércitos árabes (673-678 e 717-718), os Búlgaros (813, 913) e, num dos ataques mais ferozes, os cavaleiros da Quarta Cruzada, que destruíram quase por completo a cidade. No século XV o declínio de Constantinopla abriu as portas para o ataque dos turcos otomanos, que a tomaram em 1453, para a não mais largarem.

Os sultões otomanos restauraram gradualmente a cidade, devolvendo-lhe o seu esplendor perdido. Foram estes soberanos muçulmanos os responsáveis pelo apogeu da rebaptizada Istambul, graças às conquistas que as suas tropas de janissários foram fazendo pela Europa, África e Médio Oriente. No seu período áureo, o império otomano estendia os seus tentáculos dos arredores de Viena até ao Egipto, e desde o Irão à Argélia. Mas tudo o que sobe tem de descer, tudo o que se ilumina se acaba por apagar. O império turco não foi excepção a essa regra histórica de teses, sínteses e antíteses.

As opções erradas tomadas pelos seus governantes durante a Primeira Grande Guerra, o crescente distanciamento entre os sultões e o povo que comandavam, os ventos de liberdade e socialismo que sopravam respectivamente do Ocidente e do Norte, tornaram insustentável a manutenção do regime que de Istambul reinava sobre milhões de crentes. Sultão morto (ou melhor, exilado), Presidente posto. Mustafa Kemal Ataturk, o pai da Turquia moderna, fundou a República Turca em 1923, ocidentalizando e laicizando o país e esforçando-se por apagar a memória dos sultões otomanos. Não fosse pelos indestrutíveis testemunhos de pedra e mármore que deixaram para trás e o intrépido general teria conseguido o seu propósito.

Os legados dos sultões

A cada passo que damos em Istambul, tropeçamos num pedaço de história. Os monumentos da cidade fazem dela uma das mais deslumbrantes do mundo. As maiores relíquias encontram-se no lado europeu, no triângulo de ouro formado pelo Topkapi, a Mesquita de Haghia Sophia e a Mesquita Azul. O Topkapi é a jóia da coroa da cidade. Residência dos sultões durante mais de 400 anos, o palácio é um labirinto de quartos, hamams e corredores. No exterior, mas ainda dentro do perímetro do Topkapi, um conjunto de jardins e os altos muros asseguravam que o mundo não perturbasse a vida contemplativa da família imperial.

A poucas centenas de metros do Topkapi fica a Mesquita de Haghia Sophia. Monumental, na verdadeira acepção da palavra, a antiga basílica foi mandada edificar pelo Imperador Bizantino Justiniano I, em 535 depois de Cristo, tendo mil anos mais tarde sido convertida ao islamismo.

Do outro lado da praça, como se de um reflexo da imagem de Haghia Sophia se tratasse, ergue-se a Mesquita Azul. Nascida no início do século XVII em homenagem ao Sultão Ahmet, a mesquita deve o nome aos azulejos azuis do seu interior. O terceiro grande monumento religioso de Istambul é a Mesquita de Suleimanie, criada pelo grande arquitecto Sinan para Suleiman, o Magnífico, que aqui repousa com a sua sultana Roxelana.

No campo da arquitectura civil, Istambul ostenta um conjunto de palácios dignos dos contos de Sherazade. Se o Topkapi retratava a austeridade dos primeiros soberanos do império, os palácios da beira-Bósforo já integraram na sua construção as influências arquitectónicas sopradas da Europa Ocidental. O Palácio de Dolmabahce é o melhor exemplo desta nova tendência. A sua enorme fachada, profusamente decorada e virada para o canal, esconde um interior que os turcos só conheceram no pós-revolução. São salas e mais salas, por onde eunucos esvoaçavam atrás de pequenos aprendizes de sultões, cruzando-se com embaixadores de potências estrangeiras à espera de uma audiência com o soberano e com as centenas de funcionários que de dentro destas paredes governavam um império colossal. A visita guiada penetra nos recantos escondidos do palácio, permitindo-nos imaginar o passado de Istambul, um período de fausto e esplendor, uma era de conquistas impossíveis, na qual as palavras “turcos-otomanos” faziam tremer as pernas de povos de uma boa parte do planeta. O terror de outrora não passa agora de um discurso saudosista de guia turístico. Mas se o temor se esvaiu, já o respeito pelo poderoso Império Otomano nunca nos deixará. Esse é um tributo que os sultões conquistaram para a eternidade e que para sempre estará espelhado aqui, na sua cidade.

Mas nem só de monumentos se define a essência de Istambul, antes pelo contrário. A beleza da cidade é muito mais feita de imaterial de que de tijolos e pedras. O melhor a fazer para a conhecer é deixar-se perder pelas ruas estreitas dos seus bairros históricos, testemunhando o dia a dia vibrante dos seus habitantes e do comércio que ao longo dos séculos tem sido uma das suas fontes de riqueza. Os pontos mais turísticos são o Grande Bazar e o Bazar das Especiarias. São um local de passagem obrigatório mas não são os melhores locais para se ver a realidade da cidade, uma vez que estão muito descaracterizados pelo turismo. Para sentir a verdadeira Istanbul é necessário sair desses bairros mais visitados e procurar o que não se encontra procurando mas antes nos assalta de surpresa quando menos esperamos. É a Istanbul viva, louca, caótica mas apaixonante. Ruas, ruinhas, ruelas, forradas de uma miríade de negócios que vendem tudo e mais alguma coisa. Sentimo-nos a recuar no tempo para uma época medieval, na qual os caravanserais da cidade se recheavam de mercadorias vindas dos quatro cantos do Império Otomano, e onde pessoas de diferentes etnias convergiam para fazer as suas trocas. A Istambul moderna, cosmopolita e sofisticada, convive ainda lado a lado com essa mais primitiva e enfeitiçante. São dois lados da moeda que faz dela a metrópole fascinante que em tempos deslumbrou Napoleão, que disse mesmo que “se o Mundo fosse apenas um país, Constantinopla seria a sua capital”.

Miguel Júdice

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